Professor da UENF, teólogo Fábio Py afirma que relações com igrejas cristãs é o que elegeu e sustenta o autoritarismo do presidente Bolsonaro
Em 1970, a teóloga alemã Dorothee Sölle criou o termo “cristofascismo” para se referir às relações entre o partido nazi e as igrejas cristãs no desenvolvimento do Terceiro Reich. Em 2020, ao lançar o livro “Pandemia cristofascista” (Editora Recriar), o também teólogo Fábio Py, docente do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da UENF, resgatou o termo, trazendo-o para o contexto brasileiro. O cristofascismo brasileiro é, segundo Py, a aliança entre igrejas cristãs e bolsonaristas para a implantação de um governo autoritário, com características neofascistas e ultraliberais.
São muitas as analogias com o cristofascismo alemão. Assim como Hitler, Bolsonaro utiliza jargões cristãos como parte preponderante de seus discursos, como o clássico “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”. Assim como o ditador nazista, o presidente brasileiro também participa de eventos promovidos pelas igrejas cristãs, relacionando-se com seus líderes. E, dentre suas estratégias para alçar o poder e manter sua imagem em alta, se vale de seguidas conversões ao cristianismo.
Segundo Py, o cristofascismo bolsonarista “promove-se por meio de uma teologia política autoritária, pautada hoje no clima apocalíptico do coronavírus, baseada no ‘ódio à pluralidade democrática’. Esse ódio é salpicado por técnicas governamentais de promoção da discriminação, de ódio aos setores ‘heterodoxos’. Diante da expansão do coronavírus no Brasil, foi somada sua característica antidemocrática ao discurso economicista como justificativa para a explicita permissão da ‘política da morte’ eugênica cujos alvos são os pobres, os mais velhos, os diabéticos e os hipertensos”.
“A artimanha construída pela cúpula o desenha numa cristologia profana, apontando-o como messias, servo sofredor, ungido e eleito da nação. Faz isso para reagrupar as forças a fim de manter, a duras chicotadas, a implementação de medidas ultraliberais que hoje entregam à morte os mais vulneráveis” afirma.
Em sua análise Py salienta que, em resposta ao contexto mundial e brasileiro da pandemia de Covid-19, Bolsonaro acirrou ainda mais a associação de seu governo ao cristianismo, evocando uma espécie de “guerra dos deuses”, como define Michel Lowy.
“Nessa guerra pelo Deus cristão, Bolsonaro alimenta a base de seu governo autoritário ao reforçar sua gestão do ideário maniqueísta. Ao assumir-se como presidente dos cristãos, simplifica os conflitos políticos, que passam a transubstanciar-se em embates entre bem versus mal. Em tal arranjo, a guerra dos deuses se traveste na luta entre aqueles que representam o mal, em uma alegoria caricatural dos ‘comunistas’, dos ‘humanistas’, ou dos ‘petistas’, e entre aqueles também alegoricamente expressos como ‘cidadãos de bem’”, diz.
Nesta entrevista à ASCOM/UENF, Fábio Py fala sobre as causas históricas para a ascensão do cristofascismo no Brasil, chamando a atenção para o legado da ditadura militar — cujo ideário não foi apagado com a volta da democracia — bem como para a responsabilidade do “petismo” para a ascensão dos evangélicos no poder. Segundo o professor, mais difícil que vencer Bolsonaro nas próximas eleições, será desarmar o bolsonarismo. Veja a entrevista:
ASCOM – Segundo a narrativa do Novo Testamento, Jesus era a personificação do amor ao próximo. O presidente Bolsonaro já deu mostras suficientes de seu caráter racista, homofóbico, misógino, agressivo, arrogante e completamente insensível às mortes pelo coronovarírus. Como podemos entender este fenômeno no qual um candidato tão distanciado desse ideal cristão possa, ao mesmo tempo, para algumas parcelas da população, ter sua imagem aproximada à de Jesus Cristo?
FÁBIO – Existe um ideário medieval de que Jesus é o amor encarnado, dono de uma prática pacifista. Esta é uma tradição do catolicismo hegemônica, contudo, alguns textos do evangelho destoam disso. Eu não sei dizer que ser pacífico, no mundo antigo, era você sair da sua casa e largar sua família como as narrativas indicam nos evangelhos. E tampouco falar que não veio trazer paz, mas espada, como Jesus indica aos apóstolos. Então esse é o primeiro elemento que tem que ser problematizado: essa imagem de um Jesus pacífico, que dá a outra face etc. Existem vários grupos partidários do judaísmo, da época de Jesus, nos quais, vez ou outra ele se enquadra. Eu não acho que Jesus foi alguém tão pacifico em relação às instituições religiosas e instituições do estado romano na Palestina. Na verdade, ele foi contra as duas instituições de domínio sobre os judeus na época. Na superfície, o cristianismo não tem muito a ver com Bolsonaro. Mas temos que considerar que o cristianismo é um elemento importante da civilização ocidental. E ele é absolutamente violento no seu lado interno, dos mecanismos religiosos, como Xavier Pikaza indica, pois renomeia as outras religiões, chamando alguns deles de satânicos, demoníacos. Então essa própria agenda monoteísta interna do sistema teológico do cristianismo é um problema, pois acumula praticas violentas das demais tradições religiosas.
Estrategicamente, desde 2016, Bolsonaro vem tentando cada vez mais se afirmar como um bom católico e evangélico. E aí vemos uma série de conversões públicas dele, nas quais ele afirma: agora eu aceitei Jesus. Estrategicamente, ele afirma isso nos eventos cristãos, para poder sensibilizar de uma forma muito direta o público. Então, a via do diálogo dele com o cristianismo não é de acordo com o seu caráter reflexivo enquanto sujeito, que luta contra a homofobia, contra a discriminação, mas a via dele de diálogo com o setor é a de tentativas ou indicações de conversões. Foram diversas conversões ao catolicismo e, principalmente, mais recentemente, ao público evangélico. Nos últimos tempos, ele tem ido a várias celebrações religiosas na Assembleia de Deus, na Igreja Universal, na Igreja Mundial do Poder de Deus. Ele vem frequentando essas igrejas de forma muito direta e, com isso, tentando amplificar o seu diálogo com a base. Portanto, Bolsonaro vem tentando se afirmar como um convertido, e ao mesmo tempo, frequentar uma série de celebrações com o setor evangélico. Essa é a forma com que ele vem tentando dialogar, passando inclusive por cima dessa tônica dele misógina, a favor de armas etc. Aliás, isso é interessante, pois o setor evangélico no Brasil é contrário ao uso de armas e, mesmo assim, ele vem conseguindo suplantar essa dificuldade.
ASCOM – O envolvimento de evangélicos na política, apoiando candidatos e mesmo adentrando a arena política, vem se dando já há algum tempo no Brasil. Em que difere o momento atual do que ocorreu nos últimos governos de esquerda?
FÁBIO PY – A questão dos evangélicos na política já vem acontecendo há algum tempo, antes mesmo da construção da bancada evangélica. Na verdade, isso vem desde 1930, quando o governo varguista incentivou a criação de algumas representações, organizações religiosas. Por exemplo, nós temos a Liga Católica, formada em 1932, e a Confederação Evangélica Brasileira, formada em 1934. Essas agências vão lutar também pela representação eleitoral desses setores. A Confederação Evangélica consegue eleger, em 1936, o pastor metodista Guaraci Siqueira, que depois vai ser eleito deputado federal. O interessante é que ele tinha uma posição política de esquerda, era um ‘socialista cristão’. Também se mobiliza o catolicismo. Na ditadura militar, há um apoio indireto das igrejas evangélicas, como a Assembleia de Deus, a Batista, a Presbiteriana. Elas apoiam em silêncio a ditadura militar. Em 1986, acontece um novo tipo de entrada do setor evangélico no meio político, por conta de alguns grupos discipulados por evangelistas americanos que vão começar a incentivar a participação política das igrejas. Então, a configuração evangélica brasileira se redimensiona a partir de 1986, buscando uma representação oficial de evangélicos no meio da política partidária. Já neste ano, eles conseguem a eleição de alguns quadros, que vão começar a formar o esboço do início da bancada evangélica. Isso vai ganhando cada vez mais proporção e, a partir da década de 2010, eles conseguem criar a Frente Parlamentar Evangélica.
O que acontece é que no governo PT o grupo evangélico participou da governança petista. Vale à pena lembrar que a área de direitos humanos ficou durante um tempo nas mãos dos setores evangélicos chamados progressistas. Logo depois Marcos Feliciano assume esse setor, e se distancia do governo PT com intrigas públicas, como com Arolde de Oliveira. Mas se amplificou, culminando no impedimento de Dilma Rousseff, que foi amplamente convocado pela Frente Parlamentar Evangélica.
Assim, o impeachment de Dilma Rousseff foi levado na ponta do lápis por Marcos Feliciano, Silas Malafaia e diferentes setores evangélicos hegemônicos. Nesse contexto, surge a vontade de construção de um governo cristão. Aí que entra o Jair Bolsonaro, que se batiza no âmbito do próprio impedimento de Dilma Rousseff, percebendo o vácuo e a necessidade da Frente Parlamentar Evangélica de ter um cristão como futuro presidente. Nos últimos anos, o que se diferencia é isso: o governo do PT ajudou a Frente Parlamentar Evangélica a ganhar força. Mas essa aliança se desfez e eles ajudaram no impedimento de Dilma. Em seguida, passaram a compor o quadro do governo Temer e, posteriormente, ajudaram na construção do que chamamos hoje de bolsonarismo.
ASCOM – O PT então pode ser culpado do surgimento do bolsonarismo por ter contribuído para a ascensão dos evangélicos ao poder?
FÁBIO PY – Eu diria que sim. Vários grupos atuaram na construção do bolsonarismo, como o PT, o PSOL. As esquerdas tradicionais, mesmo de forma indireta, ajudaram nisso. Ajudaram no processo de construção de um “espantalho da esquerda”, um sujeito odioso, que fala tudo que não é correto, justo e que tem posições contrárias à democracia. Certamente, um dos responsáveis por isso é o setor de esquerda. Ao longo desse processo, ocorreram algumas questões. Quero salientar que, antes da eleição de Lula, quando se começava a pensar e mobilizar a campanha eleitoral que daria a vitória a ele, em 2001, um grupo evangélico progressista participou de uma reunião e assumiu que vale a pena abrir o diálogo com instituições religiosas grandes, como eu costumo chamar, com as grandes corporações religiosas evangélicas. A Universal e todas essas igrejas foram chamadas para o diálogo e, a partir daí, o PT passou a se relacionar com essas instituições representadas na Bancada Evangélica. Então, há um grupo, um núcleo dentro do petismo que defende o diálogo com grandes evangelistas, pastores como Silas Malafaia, Edir Macedo, etc. Esses evangélicos progressistas que são os responsáveis por esse diálogo. Isso foi até um passo importante, mas depois, ao longo do tempo, foi causando uma série de rusgas e problemas. Novamente, vale à pena lembrar que Marcos Feliciano assumiu, como liderança da Frente Parlamentar Evangélica, a comissão de direitos humanos, causando uma série de tensões, falando contra o setor LGBTQIA+, a favor da ‘família tradicional brasileira’, e isso ajudou a dar mais força ainda para a Frente Parlamentar Evangélica. Ao mesmo tempo, foi a partir do crescimento dessa Frente que aconteceu a união bolsonarista. Então não há uma ligação direta entre o lulismo e bolsonarismo, mas pode-se dizer que certas instituições, grupos, tendências do setor evangélico já participavam do governo petista e depois ajudaram a organizar e construíram muito fortemente o governo que agora a gente se está vendo, que é o bolsonarismo, e que eu chamo de cristofascismo brasileiro.
ASCOM – Qual foi o motivo do rompimento dos evangélicos com o PT?
Fábio Py – Eu diria que o motivo do rompimento dos evangélicos com o governo Dilma foi essa questão de que começou a ficar muito estridente que o governo não era tão favorável à dita “familia tradicional brasileira”. Começou-se a falar muito em ideologia de gênero, por exemplo, e essas terminologias começaram a cada vez mais afastar o governo de Dilma Rousseff das pautas tão importantes para o setor conservador evangélico. Mas eu queria também adentrar um detalhe: a Igreja Universal do Reino de Deus, mesmo sendo favorável à ‘familia tradicional brasileira’, foi uma das últimas instituições a romper com Dilma. Isso também tem que ser colocado na ponta do lápis: a Igreja Universal do Reino de Deus, historicamente, desde Collor, é uma instituição religiosa extremamente pragmática, preocupada com o poder. Ela está sempre junto de quem ocupa o poder. Nesse momento, por exemplo, já estão acontecendo várias negociações dos agentes da Universal com os principais candidatos que começam a disputar a Presidência, no caso Lula e Bolsonaro.
ASCOM – Como podemos compreender historicamente o surgimento do “Cristofascismo” no Brasil e no mundo? Quais seriam as causas desse fenômeno de domínio das massas através da religião? Especificamente no Brasil, o que contribui para isso?
FÁBIO PY – O cristofacismo é um termo que eu utilizo a partir de uma teóloga luterana chamada Dorothee Sölle. Ela usa o termo pela primeira vez para fazer referência à vivência dela no nazismo. Doutora em Teologia, foi professora em um seminário de Nova York, onde teve acesso a grupos supremacistas brancos, percebendo o vínculo desses grupos com o fundamentalismo e a luta deles contra os direitos humanos, as mulheres, os negros etc. Dorothee afirma que há uma conexão entre o nazismo e esses setores. E é essa conexão que ela vai chamar de cristofascismo. Esses sujeitos supremacistas brancos americanos, em nome de Cristo, discriminam e constroem um maquinário de ódio contra os setores heterodoxos: mulheres, negros, LGBTQIA+ e, no caso dos EUA, os latinos. Então o cristofascismo surge assim. E aí eu faço uma diferenciação com a terminologia da Dorothee. Eu reconheço a importância do fundamentalismo para a construção do governo Bolsonaro, principalmente das grandes corporações evangélicas e católicas conservadoras. O cristofascismo brasileiro, a que eu estou me referindo, é a conexão destas grandes corporações evangélicas e católicas com o governo cerceador de Bolsonaro. Elas ajudaram a construção dele, e agora dão as mãos e ajudam a composição, a manutenção dele no poder, construindo uma indústria muito pesada de signos cristãos de ódio a diferentes pessoas, como os professores, os setores LGBTQIA+, negros indígenas e quilombolas. Então, cristofascismo é uma larga composição hoje entre as grandes corporações religiosas cristãs e o bolsonarismo. Eles fazem isso a partir de uma linguagem comum: a linguagem do movimento dito fundamentalista. Bolsonaro chega a utilizar desde jargões e até textos bíblicos nas suas falas políticas.
ASCOM -Temos visto a perda da popularidade do presidente Bolsonaro à medida em que aumentam as mortes pela pandemia e que a CPI da Covid-19 avança em suas investigações. Podemos vislumbrar o fim do cristofascismo a partir da queda de Bolsonaro ou este movimento tende a continuar com outros atores políticos?
FÁBIO PY – Estamos vendo cada vez mais fritar o governo Bolsonaro, mas o que acontece é que, embora o presidente esteja perdendo apoio popular, o bolsonarismo vai ser um movimento difícil de ser desarticulado. Como ocorreu nos EUA, onde, mesmo com a derrota de Trump, o trumpismo ainda é um elemento forte. Quer dizer, existem parcelas dessa comunidade, da comunidade americana e da comunidade brasileira que atuam junto a práticas preconceituosas, racistas, e tudo o mais. Então, acho que temos pela frente um amplo desafio, ainda maior que sua derrota nas eleições, que é desarmar o bolsonarismo, que está absolutamente ligado em suas raízes as antigas elites da ditadura civil-empresarial-militar brasileira.
Nós não desarmamos esta construção hegemônica do militarismo na sociedade brasileira, não prendemos os militares que se utilizaram do governo para poder cassar, matar, praticar crimes contra a humanidade no Brasil. Bolsonaro foi criado na ditadura militar. Ele era militar à época, foi criado por ela e agora segue dissipando, a partir do cristianismo, o seu ódio em direção a diferentes setores sociais e a classes sociais distintas da dele. Então, o maior desafio é desarmar o bolsonarismo, uma vez que nós não conseguimos desarmar o legado da ditadura militar na sociedade brasileira e isso, evidentemente, ajudou a construir o que nós chamamos hoje de bolsonarismo.
ASCOM – Caso o presidente seja considerado culpado, sofra um impeachment e eventualmente seja condenado na esfera criminal, que consequências isto poderá trazer para as instituições religiosas que ajudaram a elegê-lo e ainda mantêm o seu apoio?
FÁBIO PY – Se o bolsonarismo não está desarmado, o cristofascismo não será desarmado tão facilmente. As agências religiosas seguem junto ao bolsonarismo. E seguem dando tons religiosos, ensinando, agindo como ‘intelectuais orgânicos’ (Gramsci) no governo e posteriormente também devem seguir. Então a gente tem um duplo desafio: primeiro vencer Bolsonaro nas eleições, de forma pragmática. Segundo, é tentar, ao longo do tempo, com um trabalho denso de formação crítica, educativa, de formação social, tentar desarmar tanto a ditadura militar quanto o bolsonarismo.
Caso haja impedimento e criminalização, espera-se que as grandes corporações religiosas evangélicas e católicas sofram medidas judiciais. O que eles vêm fazendo merece ser criminalizado, porque fecham os olhos para as mortes das pessoas e para a ciência, em detrimento do ganho financeiro, do ganho político. Essas instituições religiosas que abarcam esses pastores que mobilizam o bolsonarismo merecem pelo menos servir de exemplo sendo criminalizadas, pois estão cometendo crime contra a humanidade. Meio milhão de pessoas não morrem à toa, morrem porque não há uma política ampla do governo e também não houve uma conscientização religiosa e política junto à população, isso tem que ser deixado bem claro.
ASCOM – Estamos então vivendo o resultado de um duplo descaso: 1- a não punição dos militares envolvidos em crimes durante a ditadura e 2- a “vista grossa” para a proliferação de igrejas cujo único popósito é arrecadar dinheiro e aumentar seu poder?
FÁBIO PY – Na verdade, figuras como Bolsonaro só estão no poder porque os militares não foram criminalizados. Não todos, mas os militares que estavam no poder. Um dos responsáveis pelo que está acontecendo é, sim, essa linha de pensamento militar brasileira. E também não posso deixar de mencionar as instâncias religiosas que ajudaram de forma direta a eleger o Bolsonaro. Não posso deixar de destacar o descaso das instâncias religiosas cristãs às 500 mil mortes de Covid-19, inclusive protestantes tradicionais, que tanto são considerados como intelectualizados e tudo mais. Eles também desprezam a ciência hegemônica que constrói tratamentos e vacinas contra a Covid e fizeram uma aposta em vários momentos por remédios ineficazes como a cloroquina.
ASCOM – Como as milícias se encaixam no cristofascismo brasileiro?
FÁBIO PY – Já se vem falando que a milícia é o estado. Posso dizer de uma forma direta que Bolsonaro tem seu público fiel junto às milícias do estado do Rio de Janeiro. É só olhar a própria moradia dele e quem são as figuras que habitam aquela região, ou os próprios suspeitos do assassinato de Marielle, vereadora do Rio de Janeiro.
Há muita discussão sobre a vinculação de Bolsonaro com as milícias do RJ, mas, de forma mais conclusiva, a gente pode dizer que é um quadro do militarismo que ajudou a nutrir as milícias, mas que está ligado com todas essas práticas que já são clássicas desde a ditadura militar brasileira, de rachadinha, esse tipo de coisa, que vem sendo levantado agora, na própria CPI. Bolsonaro e seus filhos estão absolutamente vinculados a essas práticas como vêm demonstrando as investigações.
Se a milícia se apodera cada vez mais dos espaços públicos, das geografias e das agências do estado brasileiro, cada vez mais se tem uma pragmática dentro do cristofascismo. Porque se há uma conexão entre igrejas evangélicas e católicas com a linguagem do estado cerceador brasileiro atual, as milícias são quem opera a prática disso, a prática de violência contra diferentes setores. De forma não oficial, mas às vezes oficial.
ASCOM – Você vê algum risco concreto para a democracia brasileira neste momento ou se o bolsonarismo não for desarmado? Podemos voltar a uma ditadura?
Fábio Py – Primeiro temos que pensar que a ditadura militar não foi descrita como ditadura nos seus cinco, seis primeiros anos. Foi a partir de 1970 que começou a se configurar uma ditadura civil-empresarial-militar. No momento, é muito difícil se fazer uma análise mais detalhada sobre isso. Agora, alguns elementos têm que ser considerados. Para o professor Michael Lowy, não é possível mais falar de fascismo tal como era na década de 1940, 1950. Pra ele, o que se tem a partir de 1960 são novas versões, quando não se faz mais um governo totalitário, dissolvendo parlamento, construindo de forma direta práticas violentas, de estado ou, no caso do Hitler, imperial mesmo, do império do terceiro Reich. Para esse autor, virou uma pragmática dos governos nacionais certos traços fascistas. Eu acho que é isso um pouco que a gente passa com o bolsonarismo. Não tem aquela antiga configuração. Então não temos mais as condições de antes de 1960, novas versões. São governos pretensamente democráticos, mas com práticas de ódio internas intrínsecas a esses estados. Bolsonarismo, para Michel Lowy, é um caso desse tipo, trata-se de um neofascismo, por isso que utilizo o termo cristofascismo. Pois nunca um governo (autoritário) traçou tanta conexão com o cristianismo hegemônico no Brasil. Essa é uma equação sinuosa. Agora, deve-se considerar outro dado: na atual gestão se tem aproximadamente 7 mil militares trabalhando no governo. O que eu quero dizer com isso é que, mesmo acontecendo a vitória de outro projeto que não seja Bolsonaro em 2022, vai ser muito difícil desarmar esse governo cristão militar. Desde o processo interno da eleição ao pós-eleição, tal como aconteceu com Trump. O Bolsonaro já vem avisando, como o Trump fez também, que não vai aceitar facilmente uma pretensa derrota nas urnas. Tudo isso tem que ser colocado na ponta do lápis. Não é apenas derrotar nas eleições, tem que tentar depois desarticular essa mobilização antiga pró-militar, que existe desde 1964 no Brasil, destruir esse imaginário que existe do militar como sendo uma possibilidade de construção governamental no Brasil, com a possibilidade de golpes militares. Então eu diria que temos muito trabalho pela frente. Primeiro, tentar de alguma forma derrotar o projeto Bolsonaro em 2022. Eu preferia que fosse impeachment, mas… nem mesmo a cúpula do PT deseja o impeachment, preferem uma disputa eleitoral pois é mais rápida e menos desgastante. E também pelo risco de ocorrer uma outra virada de mesa caso o impeachment aconteça e o vice Mourão venha a ganhar novas cores. Então tudo isso tem de ser pensado diretamente. Após a saída de Bolsonaro, seja por impeachment ou eleição, é preciso depois seguir no processo de construção de diálogos e de educação, de repensar essa brasilidade. Repensar e negar, lutar contra, de forma direta, a composição que indica que os militares possam de alguma forma serem os salvadores da pátria no Brasil. Existe uma ala dentro do militarismo, um grupo, que admite condições políticas para isso. Desde o tenentismo da década de 1922, acham que têm que lutar politicamente pela construção de um Brasil, embora o tenentismo tivesse outra ideia, mas isso é um pensamento muito comum, no século 20, entre os militares brasileiros. Eu não acho que há um risco de uma nova ditadura civil militar, acho que existe risco é de o governo Bolsonaro seguir e aprofundar seu delírio que diz ser democrático. Isso é um risco muito claro: ele continuar e seguir a tônica do desprezo pela vida das pessoas.
Indicação de Leituras:
LOWY, M. O neofascista Bolsonaro diante da pandemia. Blog da Boitempo, 2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/28/michael-lowy-o-neofascista-bolsonaro-diante-da-pandemia/
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020a.
PY, Fábio. Bolsonaro’s Brazilian Christofascism during the Easter period plagued by Covid-19. International Journal of Latin American Religions, v. 4, p.318-334, 2020b.
SCHMITT, C. Théologie politique. Paris: Gallimard, 1988.
SOLLE, Dorothee. Beyond Mere Obedience: Reflections on a Christian Ethic for the Future, Minneapolis: Augsburg Publishing House, 1970.