O Brasil é considerado um país laico desde 1890, mas até que ponto a separação entre religião e estado é uma realidade? O escândalo acerca da interferência de pastores evangélicos no Ministério da Educação (MEC) mostra que esta questão pode ser, no mínimo, controversa. Segundo o teólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais do Centro de Ciências do Homem da UENF (CCH/UENF), as relações entre o estado brasileiro e as instâncias religiosas nunca deixaram de acontecer.
“O que escandaliza é o poder dos evangélicos, porque ele está aí na nossa frente, e o presidente Bolsonaro se articula a partir disso. Contudo, existe uma relação por baixo dos panos, que se dá desde o início da formação do estado brasileiro, entre o estado e a Igreja Católica. Depois da tragédia de Petrópolis, passaram a questionar o laudêmio dado até hoje à família imperial, mas não se questiona o laudêmio dado à Igreja. Muita gente nem sabe que ele existe”, diz.
Segundo Py, existe uma relação intrínseca entre o estado brasileiro, desde a sua formação, e a Igreja Católica. “A Igreja pratica isso há muito tempo, mas essa memória é silenciada. Ninguém se pergunta como a Igreja mantém a sua estrutura. São tantos bispos, arcebispos. Como eles têm dinheiro para circular tanto pelo Brasil, fazer tantas conferências? É muito simples: o dinheiro vem desses acordos ligados ao Estado. Isso vem desde a formação brasileira”, diz.
Se hoje a mídia questiona o poder dos evangélicos junto ao MEC, o fato é que a educação, segundo Py, durante muito tempo esteve nas mãos da Igreja Católica. “Não podemos esquecer a importância dos jesuítas na organização das primeiras escolas brasileiras. Isso começou a ser rompido em 1889, com a República e a discussão da laicidade. Foi quando começou-se a pensar na necessidade de tirar os padres das escolas e começar a formar pessoas para dar aula. No governo Vargas, a Igreja constrói uma outra operação, onde abre mão de ter tanto poder na educação em troca de feriados, isenção de impostos, obras nas igrejas, festividades, tudo com dinheiro público”, diz.
Segundo Py, o poder político dos evangélicos, no Brasil, tem sua força já na década de 1970, com a chamada Teologia da Prosperidade, que surgiu como uma resposta das elites brasileiras à Teologia da Libertação. Ele observa que na década de 1960, em plena ditadura militar, a Teologia da Libertação começou na se solidificar em todo o Brasil, através das comunidades eclesiais de base. Em 1968, 1969, havia mais de 3 mil comunidades eclesiais de base; em 1970, já eram mais de 20 mil.
“Então a Igreja Católica, o estado brasileiro e os grandes proprietários do Brasil começaram a olhar para isso com desespero, porque o povo estava se organizando. Uma das saídas, além da repressão direta a essas comunidades, foi o diálogo com departamentos de estado americano. Já está demonstrado que a CIA e o empresariado americano começaram a financiar a circulação no Brasil de missionários que ajudaram a formar o que em 1977 vai se chamar Teologia da Prosperidade”, conta.
A Teologia da Prosperidade defendia, de acordo com Py, que “Deus dá a graça não só da salvação máxima no céu, mas também na Terra, para que as pessoas tenham condições de vida, riqueza, prosperidade”. Os missionários circulavam o Brasil todo, financiados pelo Estado brasileiro e o Estado americano, justamente nas áreas onde a Teologia da Libertação era mais forte, como Nilópolis, Duque de Caxias, Campos dos Goytacazes. “O objetivo era criar uma nova mentalidade, e eles tiveram muito sucesso nisso”, diz o professor.
A Igreja Universal, fundada por Edir Macedo, foi uma das primeiras instituições ligadas diretamente à Teologia da Prosperidade. “O que acontece é que a Universal ganha uma grande projeção ao longo dos anos, embora o projeto original não fosse tão grandioso. Edir Macedo era um trabalhador pouco conhecido, morador da Baixada. Ele vem de uma família feita na Umbanda e, por isso, dizem que a Universal tem uma forte relação com os rituais afro-brasileiros, ou seja, há um conhecimento muito claro das elites da Igreja Universal da linguagem da Umbanda e do Candomblé”, afirma.
“Em meados da década de 1980, Edir Macedo é discipulado pelo televangelista americano Jerry Falwell (da Maioria Moral) e começa a percerber a importância da comunicação telemidiática, bem como de eleger parlamentares a partir de sua própria comunidade. E não só ele, mas Nilson Amaral Fanini, da Igreja Batista de Niterói, que também foi discipulado por Falwell, compra a TV Rio. Então não foi só a Universal, mas também as igrejas evangélicas tradicionais, como a Batista, Presbiteriana e Metodista, que se aliaram a esse projeto de americanização da cultura brasileira vinculado à ditadura militar”, diz.
Em 1986, na primeira eleição direta após a ditadura, o mundo evangélico conseguiu fazer 33 deputados. “Isso foi a raiz da bancada evangélica, que depois viria a se transformar na Frente Parlamentar Evangélica, através da qual Bolsonaro se sustenta politicamente”, afirma o professor.
Com relação ao momento atual, Py observa que o grande questionamento é: para onde estão indo os recursos da pesquisa e educação? Segundo ele, este dinheiro está tendo um direcionamento para, pelo menos, três funções: 1) financiar as grandes corporações religiosas, seus programas midiáticos e televisivos; 2) uma circulação maior de missionários americanos que vêm para o Brasil desde 2018; e 3) financiamento de agências de venda de Bíblia. “Afinal, a Bíblia é o maior sucesso editorial do Mundo!” , diz.
“Isso é interessante, porque o setor evangélico se fixa no Brasil, lá em 1840, 1950 com a venda de folhetins e bíblias. Isso é muito central na tradição evangélica. Essa é uma forma de evangelização direta. Então temos três circuitos muito atuais para onde está escoando o dinheiro. Isso está ligado a essa memória das grandes corporações religiosas”, diz.
Segundo o professor, embora a memória evangélica oficial comece a se formar por volta de 1940, com o primeiro projeto claro de evangelização protestante no Brasil e América do Sul, o mundo evangélico brasileiro tem pelo menos três troncos: étnico, que veio formar o Brasil, o tronco apologético, que vem a partir da colônia americana, e o tronco dos pentecostais.
Os primeiros evangélicos a vir para o Brasil eram provenientes da Europa e não tinham o intuito de evangelizar. A primeira leva veio para ajudar na formação do projeto náutico brasileiro, tendo construído vários portos. Já a segunda, formada por engenheiros, veio para construir cidades. Foi o caso de Petrópolis, construída por engenheiros luteranos suíços. A partir de 1840, 1850, começam a chegar grupos de batistas, presbiterianos e metodistas derrotados da Guerra de Secessão Americana. Estes vêm com o intuito evangelizador, com o mesmo projeto que tinham no Sul dos EUA. Os pentecostais chegam ao país já no século XX, por volta de 1910 (Assembleia de Deus, Congregação Cristã etc). Em 1970 surge a terceira geração do pentecostalismo no Brasil, que vai atuar na Teologia da Prosperidade.
Sugestões de leituras:
Fontes, V (2010). O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. Rio de Janeiro: Edufrj.
Pietra, A (2008). Evnagelização protestante na América Latina. Volume 2. São Leopoldo: Sinodal.
Py, F (2020b). Bolsonaro’s Brazilian Christofascism during the Easter period plagued by Covid-19. International Journal of Latin American Religions, v. 4, p.318-
334.
Py, F (2021). Padre Paulo Ricardo: trajetória política digital recente do agente ultracatólico. Tempo & Argumento, v.13, n.34.
Sá Neto, R (2022). O partido da fé capitalista: organizações religiosas e o imperialismo norte americano na segunda metade do século XX. Tese de doutorado (História), Universidade Federal Fluminense, Niterói.