Censo 2022 revela maior pluralidade religiosa

Especialistas analisam resultados, como crescimento aquém do esperado para os evangélicos e aumento substancial das religiões de matriz africana

Um país que ainda é eminentemente cristão, mas que apresenta uma maior pluralidade religiosa. Este é o retrato religioso do Brasil, revelado no Censo 2022, divulgado no último dia 6 pelo IBGE. Realizado dois anos após o previsto, que seria em 2020, o Censo traz algumas surpresas, como um aumento menor do que o esperado para os evangélicos e, por sua vez, uma queda também menor para os católicos, além de um aumento substancial das religiões de matriz africana, bem como o aparecimento de tradições indígenas, que sequer apareciam no último Censo.

Em Campos dos Goytacazes, o percentual de católicos caiu de 51% para 43%, enquanto no país inteiro esta redução foi de 65,1% para 56,7% da população. Já os evangélicos de Campos subiram de 31% para 37%. No país, os evangélicos subiram de 21,6% para 26,9% dos brasileiros. As religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé, que não apareciam no Censo 2010 em Campos dos Goytacazes, agora perfazem 0,7% da população do município. No país, esse aumento foi de 0,3% para 1%.

O teólogo, historiador e professor Fábio Py credita os números relativos a católicos e evangélicos ao Papado de Francisco. Ele ressalta que o catolicismo é hoje a religião que mais cresce no mundo, inclusive na América Latina.

— Ele era uma figura agregadora, preocupada com o acesso ao outro, e também com um processo muito claro de aprofundamento do catolicismo — afirma Py, que é coordenador de disciplina do curso de Licenciatura em Pedagogia da UENF/CEDERJ e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas Sociais do Rio de Janeiro (Iuperj).

Segundo ele, não se esperava uma taxa de crescimento tão baixa para os evangélicos neste momento. Diante dos dados levantados em Censos anteriores, o demógrafo brasileiro José Eustáquio Alves chegou a prever, em 2021, que o número de evangélicos ultrapassasse o de católicos no Brasil até o ano de 2032. Diante dos resultados do Censo 2022, ele refez os cálculos, alargando esta linha temporal até 2049.

Optando por não entrar neste tipo de especulação, Py prefere ressaltar que o cristianismo continua hegemônico no Brasil. E que, mesmo tendo crescido pouco (em relação ao previsto), a religião evangélica continua muito forte no país — um em cada quatro brasileiros são evangélicos.

— O Brasil segue sendo cristão. Somando evangélicos e católicos, temos cerca de 83,6%. Mas é claro que há uma certa quebra da hegemonia da Igreja Católica neste momento. No entanto, o crescimento dos evangélicos está sendo um pouco mais lento do que se esperava — diz o professor.

Mas por que os evangélicos são mais fortes no Brasil do que no restante da América Latina? Para ele, isso se deve, em grande parte, ao imperialismo americano, exercido através da transnacionalização pela via religiosa. Devido à importância estratégica do Brasil na América Latina, o país vem recebendo muitos missionários evangélicos americanos desde a ditadura militar.

Fábio Py

— De 2000 a 2010, o Brasil recebeu muitos missionários americanos, tal como ocorreu na ditadura militar brasileira. Agora, com Trump, isso também está se intensificando. Há um processo muito claro de incentivo a um imperialismo americano mediante a transnacionalização pela via religiosa — afirma.

Ao mesmo  tempo, Py também considera um facilitador desse processo o fato de muitas igrejas evangélicas — como a Batista e a Assembleia de Deus — terem um viés muito comunitário, o que faz com que acabem se identificando nas geografias brasileiras.

Aumento dos evangélicos pode ter reflexos na política

O aumento do número de evangélicos, ainda que aquém do esperado, pode produzir reflexos na política brasileira, uma vez que o setor tem se notabilizado por sua forte atuação nesta área. Py observa que existe uma inteligência política das grandes corporações evangélicas, que se notabilizou ao longo do tempo em ocupar e fazer partidos, deputados, senadores, vereadores que ocupam a arena pública brasileira. De acordo com o professor, eles se organizam de forma pública de um jeito muito inteligente — a Frente Parlamentar Evangélica, que não é só formada por evangélicos, mas por atores que se mobilizam a partir da pauta da família tradicional brasileira.

— A pressão vai aumentar? Sim, porque aumentou a quantidade de evangélicos. Mas, ao mesmo tempo, a gente não sabe se existe toda essa vazão em termos de voto. Historicamente a gente sabe que isso não acontece de uma forma tão direta. O que se reconhece é que determinados setores evangélicos têm uma relação mais ou menos mapeada com os setores conservadores que, vez ou outra, já foram PSDB, e que mais recentemente estão ligados ao que a gente conhece hoje como bolsonarismo — afirma.

Segundo Py, para 2026, há pelo menos três grupos de evangélicos disputando a chamada hegemonia pública brasileira: o setor liderado por Silas Malafaia (mais próximo ao bolsonarismo), o setor ligado a Edir Macedo (que perambula entre o bolsonarismo e o petismo) e o terceiro grupo que vem se notabilizando mais recentemente, ligado à família dos Ferreira, da Assembleia de Deus, que atua de forma parecida a este último.

País vive processo de diversificação das expressões religiosas

Em relação ao aumento das tradições de matriz africana e indígena, Py considera que o país está vivenciando um processo muito claro de complexificação religiosa, ou seja, um processo em que as expressões religiosas se tornam mais diversificadas.

— A pluralidade religiosa é um dado fundamental no âmbito da sociologia da religião na modernidade. Está ocorrendo o decréscimo das tradições mais centralizadoras, hierárquicas, e o crescimento de tradições mais ligadas à individualização. O que significa, na prática, uma maior diversidade religiosa. Ao mesmo tempo, isso implica em muitos desafios — diz.

Ele vê com preocupação atos de intolerância e violência contra terreiros de umbanda e candomblé, que vêm se intensificando. Para piorar o quadro, não existe uma política pública de proteção a tais tradições religiosas.

— Estudos apontam que, diante de uma certa pluralidade religiosa, certas tradições monoteístas tendem a aumentar o grau de violência. As pessoas têm maior necessidade de reafirmar o fundamento de sua fé. É o fundamentalismo religioso, comumente evangélico e católico — afirma.

Ativismo religioso e divulgação de informações pela internet explicam crescimento das religiões de matriz africana

O doutorando Paulo Prado, do Programa de Sociologia Política do Centro de Ciências do Homem da UENF e membro do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas da UENF (NEABI), credita o aumento significativo das pessoas que se declaram de religiões afro-brasileiras como uma consequência do ativismo religioso. Segundo ele, hoje se propaga a importância de se declarar como pertencente a essas religiosidades.

— É sabido que, devido a todo o processo colonial de perseguição contra as Comunidades de Terreiro, várias pessoas tinham receio de se declarar como pertencentes a estas religiões. Essa questão está associada tanto com o medo da estigmatização da fé como ao processo de sincretismo utilizado nessas religiões para se blindar das violências — afirma.

De acordo com Prado, nos Censos anteriores, muitos se declaravam como espíritas ou católicos, o que gerava uma subnotificação dos dados.

— O papel dos movimentos sociais na luta, reconhecimento e valorização dessas religiões pode ter auxiliado no aumento significativo desses dados. E também as redes sociais podem ter ajudado, visto que há uma grande circulação de informações referentes aos terreiros, acessíveis a todos. Mas há ainda quem acredite que essas dados continuam subnotificados — diz.

De acordo com o IBGE, dos autodeclarados adeptos de religiões de matriz africana, 42,9% são brancos, 33,2%, pardos e 23,2%, pretos. Prado questiona a ideia, divulgada em algumas mídias, de que a maioria dos adeptos das religiões de matriz africana são brancos. Segundo ele, os dados estão sendo analisados de maneira incorreta, uma vez que a população negra, de acordo com o IBGE, é entendida como o conjunto dos que se autodeclaram pretos e pardos.

— Assim, quando olhamos para os dados novamente vemos que, nessas religiões, 23,2 % se autodeclararam pretos e 33,2% como pardos. Nesse sentido, 56,4% das pessoas de terreiro se enquadram na categoria negra. Ou seja, a maioria nessas religiões não são brancas e sim negras. Temos que ter esse cuidado para não impomos uma visão deturpada dessas religiões — afirma.

Segundo Prado, desde seu início o NEABI/UENF vem discutindo e participando de eventos nos quais são discutidas e propostas formas de enfrentamento e suporte a estas comunidades. Nesta semana, por exemplo, foi realizada uma reunião com o Fórum Municipal de Religiões Afro-brasileiras e a Subsecretaria de Igualdade Racial e Direitos Humanos, com o objetivo de organizar o Fórum Regional Inter-religioso, evento do qual o NEABI já participou em anos anteriores.

O objetivo do Fórum é discutir a temática e mobilizar pessoas e movimentos sociais para a Caminhada pela Liberdade Religiosa, que ocorrerá em Copacabana, Rio de Janeiro. Também vem sendo discutida a criação da Caminhada pela Liberdade Religiosa em Campos dos Goytacazes. O tema foi abordado no aniversário de 13 anos do NEABI/UENF, a partir da execução de um curta abordando os conhecimentos produzidos nos terreiros e utilizados para processos de autocuidado.

(Jornalista: Fúlvia D’Alessandri – ASCOM/UENF)

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