Pesquisa embasou tese de doutorado da assistente social, advogada e mestre em Ciência da Religião Líbia Goulart no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF

Apesar dos avanços na legislação brasileira, a violência contra as mulheres não para de crescer. Só em 2022, foram registrados 18,6 milhões de casos de violência contra mulheres, de acordo com o Atlas da Violência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2024. Grande parte deste tipo de violência se encaixa no contexto conjugal.
A questão está no centro de uma pesquisa feita na UENF que acaba de receber o 2º lugar na 5ª (V) Edição do Prêmio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Viviane Vieira do Amaral – Edição 2025 – Categoria Produção Acadêmica.
Intitulada “Entre a fé e a quebra do silêncio: uma abordagem empírica da violência doméstica conjugal sob a influência do conservadorismo religioso”, a pesquisa embasou a tese de doutorado da assistente social, advogada e mestre em Ciência da Religião Líbia Goulart, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF, com orientação do professor Frederico Carlos de Sá Costa.
A pesquisa — que teve por objetivo averiguar de que maneira a violência doméstica é influenciada pelo conservadorismo religioso — dá continuidade ao mestrado de Líbia, cuja dissertação teve como título “Religião e violência doméstica: um olhar a partir das mulheres atendidas pelo Núcleo de Prática Jurídica do Centro Universitário Redentor em Itaperuna-RJ em 2018”.
Atuando no Núcleo de Prática Jurídica como advogada desde 2016, Líbia constatou uma demanda crescente de mulheres que procuravam atendimento no local em razão de sofrerem violência doméstica. O fato a motivou a realizar o mestrado, no qual realizou um estudo de caso com 10 mulheres atendidas no Núcleo, todas católicas praticantes.
— A opção pelas católicas foi porque, na ocasião, a Campanha da Fraternidade promovida pela CNBB tinha como tema Fraternidade e Superação da Violência. O livreto da campanha trabalhava o tema da violência, mas em momento algum orientava às mulheres a romperem com o silêncio. Então, quis ver na fala dessas mulheres católicas o que as incentivou a procurar o Núcleo de Proteção Jurídica, rompendo o silêncio — conta.
Rosa, uma sobrevivente da violência doméstica
No doutorado na UENF, Líbia Goulart buscou saber como estariam hoje essas 10 mulheres, sete anos após o mestrado. No entanto, só conseguiu contato com uma delas, Rosa (nome fictício). O método utilizado foi a História de Vida, na qual a participante torna-se a principal fonte de informação e a base para a construção das categorias analíticas.
Rosa, que em 2018 relatou sofrer violência psicológica/moral por parte do marido, relata à pesquisadora uma história emblemática a respeito do papel do conservadorismo religioso na manutenção de relações conjugais abusivas.
Mesmo tendo sua profissão — atendente de radiologia — e custeando a maior parte das despesas da casa, Rosa aguentou a violência conjugal por sete anos, passando por toda sorte de infortúnios, até que ocorresse a separação — cuja iniciativa partiu não dela, mas do marido, que a expulsou de sua casa.
Hoje em seu segundo matrimônio e dizendo-se feliz com o atual parceiro, Rosa deixa transparecer em seu depoimento toda a falta de apoio que teve por parte do padre de sua igreja. Mesmo desesperada com a situação que vivia em casa, o sacerdote jamais a aconselhou a pedir o divórcio, mas a “ficar calma, jejuar e rezar”, além de “não desviar os olhos das coisas de Deus”. Outras pessoas da igreja, com as quais Rosa se relacionava, também repetiam o mesmo discurso.
‘Abuso de poder é tolerado ou até justificado como parte do papel masculino de liderança familiar’
Em sua pesquisa, Líbia Goulart defende a ideia de que o contexto instalado pelo conservadorismo religioso tem potencial de atuar na promoção da violência doméstica. Segundo ela, as práticas religiosas têm um papel fundamental na estruturação da vida familiar e na transmissão de valores. A religião serve não só como guia moral, mas também como um mecanismo de socialização, em que vínculos familiares são fortalecidos através da participação comunitária, como cultos, missas e festas religiosas, que criam um senso de pertencimento.
— A ideia de que o casamento é algo sagrado e indissolúvel fomenta a perpetuação de relações abusivas, levando à normalização ou minimização da violência doméstica conjugal como parte da dinâmica familiar. A violência conjugal é banalizada, faz parte da relação, não motiva a separação do casal — diz.

Líbia ressalta que o matrimônio é visto como a base da unidade familiar, o que contribui para a resistência a mudanças sociais que envolvem reinterpretação ou a flexibilização dos termos do casamento. Segundo a pesquisadora, em muitas tradições religiosas conservadoras, há uma promoção explícita de uma hierarquia dentro do casamento, na qual o homem é visto como o cabeça do lar, enquanto a mulher deve lhe obedecer e a ele se submeter.
— Essa ideologia, presente em diversas denominações religiosas no Brasil, eminentemente em algumas correntes do catolicismo e do protestantismo, acaba por criar um ambiente em que o abuso de poder por parte do homem é tolerado ou até justificado como parte de seu papel de liderança familiar — afirma.
Além disso, é muito comum que, mesmo diante de casos de violência, líderes religiosos se limitem aconselhar as vítimas a orarem pela paz familiar, ao invés de incentivá-las a procurar auxílio nas áreas legais ou policiais, reforçando a ideia de que cabe à mulher suportar todas as vicissitudes — até mesmo a violência do marido — em nome da preservação da família.
Líbia ressalta que, frequentemente, as mulheres que vivenciam situações de violência são vistas como responsáveis pelo comportamento violento de seus maridos — seja por não desempenharem adequadamente seus compromissos de esposas e mães, seja por desrespeitarem as normas de submissão. Perspectiva que reforça a ideia de que as mulheres devem suportar a violência, em vez de denunciá-la ou procurar ajuda externa, o que perpetua uma cultura de impunidade entre os agressores.
— Em algumas denominações, as mulheres são encorajadas a buscar ajuda dentro da própria igreja, enquanto em outras a violência é frequentemente tratada como uma questão privada, que deve ser resolvida internamente, sem a intervenção de autoridades externas. Isso resulta na naturalização da violência, uma vez que as mulheres são ensinadas a perdoar e a seguir em frente, independentemente do sofrimento que enfrentam — diz.
Problema requer sensibilização das instituições religiosas para o acolhimento das vítimas
Líbia acredita que a questão da violência conjugal deve ser enfrentada não só a partir de leis, uma vez que estas, mesmo avançadas, não vêm surtindo efeito. Dada a influência do conservadorismo religioso na sociedade brasileira, ela considera essencial que haja estratégias de enfrentamento deste tipo de violência que passem pela sensibilização das instituições religiosas para a necessidade de um acolhimento ativo e inclusivo das vítimas.
Em sua análise, compreender a influência do conservadorismo religioso na violência doméstica é crucial para entender as suas raízes no Brasil, bem como para desenvolver estratégias efetivas de prevenção e intervenção.
— A promoção de uma abordagem mais crítica e acolhedora dentro das instituições religiosas é imperativa para combater a violência e apoiar as vítimas em sua busca por justiça e recuperação — afirma.
Líbia ressalta que a violência contra a mulher não se restringe ao âmbito da violência física. Incluem-se a violência patrimonial, a violência sexual, a violência moral e a violência psicológica cometida por parceiros.
O Brasil ocupa hoje a quinta posição no mundo em termos de violência contra a mulher, ficando atrás apenas de El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas pelos Direitos Humanos.
(Jornalista: Fúlvia D’Alessandri – ASCOM/UENF – Fotos cedidas por Líbia Goulart)