Um ‘recomeço’ para a humanidade

A civilização humana vive um momento ímpar, cujas consequências ainda são imprevisíveis. Esta é a opinião do cientista social Roberto Dutra, do Laboratório de Gestão e Políticas Públicas da UENF (LGPP), que nesta entrevista discorre sobre o atual momento pelo qual passa a sociedade globalizada. Segundo Dutra, a humanidade vive um fenômeno social jamais presenciado, com a paralisação de quase todos os sistemas da sociedade em prol de uma meta: salvar o maior número de vidas. E o que o mundo pode esperar após o confinamento? A única certeza, na sua opinião, é que haverá “um recomeço”, no qual as incertezas em relação ao futuro terão um papel relevante. Veja a íntegra da entrevista:

ASCOM – Que tipos de mudanças sociais podemos esperar para o período pós-pandemia? Serão positivas ou negativas, na sua opinião?

Roberto Dutra – Esta é a questão mais importante sobre o impacto da pandemia na sociedade. Na verdade, é muito provável que a pandemia provoque mudanças estruturais de grande alcance em diversos sistemas da sociedade. O confinamento social se tornou uma forma de vida social que atravessa e paralisa a dinâmica de todos os sistemas da sociedade: economia, família, política, ciência, saúde, educação, religião, direito, comunicação de massas, esportes. É um fenômeno que nunca ocorreu na sociedade moderna, nem mesmo durante as duas grandes guerras mundiais. Nunca houve uma paralisação mundial simultânea de quase todos os sistemas da sociedade, submetidos a único imperativo, o de salvar o maior número de vidas possível.

Entre os cientistas sociais, não se pode deixar de notar certo entusiasmo com este “experimento social” a que estamos todos submetidos: o imperativo da saúde (salvar vidas) tornou-se um valor praticamente absoluto para a política, apoiando-se especialmente na autoridade da ciência e na simultaneidade opinativa produzida pela comunicação de massas. A naturalização das rotinas sociais foi rompida e a nova hierarquia de valores – com a preservação da vida no topo – se tornou um força inegável capaz de impulsionar e orientar mudanças estruturais. É possível perceber, por exemplo, que o ideal da solidariedade social ganha novo apoio social, especialmente pela percepção da importância dos sistemas públicos de saúde. Ao assumir a preservação da vida como meta coletiva central e acima das outras, e política e a opinião pública abrem espaço para este retorno da solidariedade pelo menos no plano da cultura política. No entanto, se este retorno vai se traduzir institucionalmente na criação de políticas públicas que promovam a igualdade e a cidadania social, só a própria evolução social pode dizer. Na verdade, é possível dizer que mudanças estruturais de largo alcance tendem a ocorrer, mas não se poder dizer quais mudanças e em que direção. Haverá um recomeço para os sistemas sociais com o fim do isolamento. A memória social continuará se orientando pela leitura do passado, mas desta vez as incertezas do futuro terão um papel muito mais importante. Isto é possível prever. Em momentos de crise como este é tentador recorrer a narrativas teleológicas, como se houvesse, desde sempre, um ponto de chegada positivo ou negativo para o qual a pandemia nos empurra com mais rapidez. Este tipo de narrativa serve para trazer segurança em tempos tão inseguros, pois apontam um destino definido no meio da tempestade. Mas a ciência social deve se distanciar de toda forma de teleologia, otimista ou pessimista, pois o futuro social é aberto, indeterminado. A crise da pandemia evidencia que as estruturas sociais são passíveis de mudança, que as mudanças estão ocorrendo, que vão continuar ocorrendo, que podem se acelerar, mas quais mudanças é algo que não se pode prever.

ASCOM – Especificamente em relação ao trabalho, você acredita que o home office será mais frequente a partir de agora?

Roberto Dutra – Acredito que será mais frequente. A pandemia está tornando o home office uma alternativa bem mais difundida e isto deve continuar. Mas existem barreiras na estrutura social que precisam ficar claras: existem formas de trabalho intensivas em interação, em contato social face a face, e é improvável que o home office possa ser uma alternativa em massa para elas. Determinados serviços públicos como educação, saúde e assistência social exemplificam bem isso. Tratam-se de serviços produzidos nas interações cotidianas das “burocracias de nível de rua” com as pessoas atendidas. Na crise, muito se fala dos serviços essenciais, do heroísmo profissional de enfermeiros, médicos e de todos que atuam na chamada “linha de frente”. O home office pode até possibilitar interações virtuais, mas que me parecem incapazes de substituir as interações face a face no sentido de incluir amplas camadas da população.

ASCOM – Como você avalia o papel da mídia nesse momento? Essa avalanche de informações tem sido benéfica ou não, levando-se em conta o fato de que muitas pessoas que poderiam se prevenir simplesmente não o fazem?

Roberto Dutra – Existem subsistemas da sociedade que foram paralisados, como quase todos que dependem fortemente de contato pessoal: religião, esportes, educação, ciência, grande parte da política, da economia, do direito, e do mundo artístico. No entanto, existem outros subsistemas cuja dinâmica não foi paralisada, mas redirecionada e até intensificada. É o caso da família e dos meios de comunicação de massas. As relações familiares, especialmente no sentido burguês da família nuclear, foram intensificadas como não ocorreu em nenhuma outra esfera. Isto só é comparável aos meios de comunicação de massa. Sem a função dos meios de comunicação de massa, que é construir um mundo simultâneo de preocupações compartilhadas, seria impossível que as medidas de prevenção ditadas pelo sistema da saúde a nível global fossem conhecidas e adotadas pelas populações. Embora a adesão às medidas de isolamento social não seja total – no Brasil ela está muito abaixo do necessário –, deveria ser surpreende, do ponto vista sociológico, que a grande maioria dos afetados conheça e siga as medidas de prevenção. Embora a avalanche de informações não seja benéfica, me parece que o problema, desta vez, não tem a ver com os meios de comunicações de massa. O problema é que a vida social foi extremamente simplificada sob a forma do confinamento doméstico. O sistema de saúde se tornou uma espécie de “instituição total” na sociedade. O contato cotidiano das pessoas com a maioria dos sistemas sociais foi interrompido, e isto acarreta um afunilamento da identidade social que pode trazer problemas psicológicos para muitas pessoas.

ASCOM – Percebe-se neste momento uma rede de solidariedade para ajudar os mais vulneráveis. Essa pandemia pode, de alguma forma, transformar para melhor o ser humano?

Roberto Dutra – Uma das lições clássicas da sociologia é que o ser humano, enquanto entidade universal dotada de atributos cognitivos e morais compartilhados, simplesmente não existe. Os atributos humanos variam no espaço e no tempo de acordo com o envolvimento na vida social e em sua evolução. Inclusive o próprio conceito de humanidade é profundamente variável em seu escopo e atributos. A ideia de uma humanidade global e sem fronteiras é uma invenção cultural da modernidade, com raízes religiosas inegáveis, mas que nunca se institucionalizou em um sistema de direitos e obrigações capaz de garantir solidariedade global. Não há solidariedade real para além da cidadania e do Estado nacional, exceto as formas transnacionais de solidariedade intraclasse da classe média e das classes dominantes. Algo interessante da pandemia é que ela pode aproximar as classes médias do Estado de bem-estar social, ao passo que sua dependência de direitos sociais e da solidariedade institucionalizada na cidadania nacional se torna mais evidentes. A ideia de uma rede de proteção para os mais vulneráveis não é novidade. Na verdade, é uma das ideias mais velhas e pouco promissoras em que se pode apostar: proteger os mais pobres com mecanismos institucionais distintos daqueles destinados à classe média sempre foi o tipo de política social típica do neoliberalismo. O neoliberalismo conseguiu convencer até a esquerda a fragmentar a política social entre política compensatória de transferência marginal de renda para os pobres e política regulatória de serviços privados para a classe média. Contra esta fragmentação é preciso atrair a classe média para os serviços públicos, para escola pública, para o SUS. A história ensina que políticas sociais somente para os pobres estão condenadas à deslegitimação pública, à estigmatização, ao abandono e ao sucateamento: o que é apenas para os pobres acaba não servindo para ninguém. Portanto, não há nada de promissor na solidariedade fragmentada. Realmente transformador e novo seria uma solidariedade complexa centrada na interdependência ampla entre os pobres e a classe média, capaz de superar a assimetria moral entre quem se percebe apenas como contribuinte e financiador, de um lado, e aqueles percebidos somente como beneficiários, de outro.

ASCOM – Vivemos um período em que o radicalismo político extrapola o limite da racionalidade, em sua opinião existe um limite para o radicalismo político dentro da sociedade e para onde esse radicalismo vai nos levar?

Roberto Dutra – Não vejo o radicalismo político como uma marca de nossa época. O que temos é um radicalismo discursivo e moral combinado com uma ausência de alternativas programáticas realmente radicais. Temos radicalismo na forma e falta de radicalismo no conteúdo. Ser radical, como dizia Marx, é ir à raiz dos problemas, é propor soluções estruturais para problemas estruturais. Neste sentido, o radicalismo pode ser positivo para a política democrática, pois esta depende de ofertas programáticas realmente distintas. Não há radicalismo programático separando as posições da esquerda e da direita dominantes no Brasil e no mundo, mas sim um radicalismo moral, baseado em ofensas e julgamentos morais, e não em caminhos distintos sobre como organizar a economia e a vida social. Na verdade, eu acredito que a falta de radicalismo programático é o verdadeiro problema. Muitos interlocutores preocupados com o destino da política democrática ainda estão presos à ideia de um centro político como lugar de apagamento e moderação das principais diferenças políticas. Acreditam que a moderação programática é o único caminho possível e/ou desejável. Precisam se dar conta que a moderação que apaga diferenças programáticas é parte do problema. Estão ainda reféns da confusão entre radicalismo e sectarismo: partem da premissa que um programa político radical, ousado, que busque soluções estruturais para problemas estruturais, é sempre sectário, estreito no espectro dos grupos e classes sociais que lhe dão sustentação. Esta confusão pode e deve ser desfeita, pois radicalismo programático não significa necessariamente sectarismo.

Programas rebeldes de desenvolvimento nacional foram sempre radicais e contaram com ampla base de apoio envolvendo setores populares e médios. Quando não contaram com o apoio de setores burgueses, o apoio da classe média e dos setores populares garantiu, muitas vezes, as condições para a coerção da política da minoria dissidente e entreguista. Não há lei social ou política que faça da classe média a linha de frente da burguesia antinacional e antipopular. Por mais que esta seja a configuração atual, não foi sempre assim. É preciso recuperar as nuances e contradições da história política e a contingência das estruturas da ação social. A classe média está em disputa, como sempre esteve. É preciso ser radical no programa e amplo nas alianças. Radical no conteúdo e amplo na forma da comunicação política.

ASCOM – Quais valores são mais fortes em nossa sociedade? Ainda existe ética?

Roberto Dutra – Nossa sociedade é marcada pela variedade, pela incompatibilidade e pelo conflito entre valores sociais. Conduzimos nossa vida em diferentes esferas de valor: economia, política, família, ciência, educação, saúde, artes, religião. Não se trata de uma pluralidade infinita, e nem de uma visão subjetivista dos valores. Não existem valores puramente pessoais e subjetivos, mas um leque específico de valores compartilhados. Os valores são compartilhados, mas como, com que hierarquia? Que valores são mais importantes, em que contexto e para quem? Tudo isso varia muito dentro da própria sociedade, que não é definida por uma hierarquia fixa entre os distintos valores. Mas, apesar da variação na conduta de vida dos indivíduos, existem padrões de hierarquia entre os valores que predominam ao longo do tempo. O principal deles é o padrão capitalista, que coloca os valores da economia, como a eficiência e a produtividade, acima dos valores de outras esferas sociais como a justiça e a democracia. O curioso na crise da pandemia é que o valor da preservação das vidas individuais, institucionalizado no sistema social da cura de doenças, deslocou estes valores econômicos e assumiu temporariamente o topo da hierarquia. Isto mostra que a força dos valores varia com a mudança social. Quanto a ética, precisamos entender que nenhuma sociedade, do passado ou do presente, possuiu a consistência racional que costumamos associar às exigências éticas. O mundo social não é formado a partir de razões, de fundamentos ético-racionais capazes de estruturar o conjunto da vida social. Na modernidade, a ética se tornou um espaço científico de reflexão sobre a moralidade social, uma espécie de ilha de racionalidade moral. É ingênuo, perigoso e até indesejável querer que a vida social como um todo passe a ser orientada pela consistência, coerência e racionalidade que costumamos associar à reflexão ética sobre a moral. Não temos um problema de falta de ética. Temos problemas estruturais econômicos, políticos, jurídicos, educacionais, sociais, na saúde, que não podem ser resolvidos por mais ética, por mais moralidade racional. É preciso entender que a vida social vai além da moral e que a vida moral não pode ser completamente racionalizada e refletida. O papel da reflexão ética deveria ser, a meu ver, muito mais o de identificar os limites da racionalidade na vida moral e com isso alertar para os perigos da própria moralização da vida social. Se observamos a vida política brasileira, vemos florescer um processo de moralização da luta pelo poder: a diferença entre o bem e mal ganha primazia em relação às diferenças programáticas. O fortalecimento da moral parece estar ligado a um enfraquecimento da racionalidade programática. Não se trata de querer abolir a moral da política ou de qualquer esfera social, mas sim de identificar seus limites e o perigo de sua expansão, que conhecemos como moralismo.

ASCOM –  O escritor e jornalista uruguaio Eduardo Galeano disse: “na luta do bem contra o mal, é sempre o povo que morre”. Por que parte da sociedade despreza o valor da vida humana?

Roberto Dutra – Na idade média, assim como em todas as sociedades pré-modernas, a preservação das vidas individuais não tinha nenhum valor em si. Nestas sociedades, seria impensável que as atividades sociais fossem paralisadas com base na ideia de que cada vida individual deve ser preservada. A valorização da vida individual é resultado de um longo, improvável e tortuoso processo de evolução sociocultural. Partiu da ideia religiosa de que cada pessoa é sagrada aos olhos de Deus, até se tornar o humanismo secular que temos hoje, ancorado nas constituições da maioria dos países. Portanto, é preciso entender, em primeiro lugar, que o valor da vida humana não é um dado natural, mas sim uma construção contingente, precária, mutável, e própria da sociedade moderna. Apenas no mundo moderno, no qual a norma da preservação das vidas individuais se acha institucionalizada, faz sentido perguntar porque parte da sociedade despreza este valor. Esta pergunta precisa ser respondida levando em conta uma série de fatores, especialmente a seletividade na institucionalização do valor da vida. As desigualdades sociais incluem também a desigualdade no acesso aos direitos capazes de garantir o valor da vida de cada indivíduo. A biopolítica, que sempre promove implicitamente diferenciações no valor da vida de grupos e classes sociais, é de fato uma dimensão fundamental da desigualdade social, relacionada diretamente ao sistema de saúde. Além disso, a própria percepção dos riscos para a vida é estruturada pela desigualdade social. As classes populares, caracterizadas pela exposição a riscos de vida muito mais frequentes e intensos que as outras classes sociais, desenvolvem também uma cultura própria de naturalização destes riscos. Quem é diariamente ameaçado pelo risco de morrer soterrado, ou pelo risco de morrer por bala perdida, tende a minimizar os riscos de uma pandemia como essa.

ASCOM – As ações do governo, de apoio social, são baseadas em aplicativos de telefones e cadastros on-line, via internet, em um país com milhares de pessoas desconectadas. Essas ações podem aumentar ainda mais o abismo social que vivemos com o fracasso das políticas públicas feitas de forma emergencial.

Roberto Dutra – Sim, se estas ações estiverem baseadas exclusivamente em aplicativos de telefones e em cadastros on-line, certamente aumentam o abismo social. As políticas sociais precisam de uma linha de frente robusta, capaz de buscar os excluídos e invisíveis. Precisamos combinar o acesso digital com o acesso presencial, face a face. Desmontar as burocracias de nível de rua, como tem sido feito na previdência social, é contribuir decisivamente para o aumento de nosso abismo social.

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