Professor da UENF lança livro ‘Teoria Sistêmica da Desigualdade’

O professor Roberto Dutra, do Laboratório de Gestão e Políticas Públicas da UENF (LGPP), lançou este mês o livro “Teoria Sistêmica da Desigualdade”. No livro, o professor propõe uma teoria não determinista sobre a desigualdade, e defende a ideia de que as desigualdades existentes no Brasil são o resultado de práticas e decisões organizacionais dos mais diversos tipos.

— Um aspecto importante de minha proposta é a existência de uma única e mesma sociedade mundial e a recusa em falar de sociedades nacionais. O Brasil não é uma sociedade com uma estrutura de desigualdade própria, mas sim um Estado-nação integrado nesta sociedade global. Isto significa que as desigualdades dentro do Brasil precisam ser relacionadas com desigualdades entre o Brasil e outros países — afirma.

Doutor em Sociologia pela Humboldt Universitat zu Berlim e mestre em Políticas Sociais pela UENF, Roberto Dutra foi diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Nesta entrevista à ASCOM/UENF, ele fala sobre a questão da desigualdade.

ASCOM/UENF – De que forma a sua teoria sobre a desigualdade pode ajudar na compreensão desta questão no Brasil? 

Roberto Dutra – A minha teoria afirma que estruturas de desigualdade são construídas, reproduzidas e transformadas pelas práticas de diferentes sistemas sociais. E como a sociedade é um conjunto complexo de sistemas sociais diferenciados, as estruturas de desigualdade também são múltiplas e em grande medida distintas de acordo com o sistema social. Não existe uma estrutura de classes que define de antemão as chances das pessoas na economia, no sistema de ensino, no direito e na política. O que chamamos de desigualdade de classe são formas de classificação de pessoas produzidas por cada um destes sistemas sociais, e que se tornam, em cada um deles, fenômenos estruturais distintos. O mesmo vale para desigualdades de gênero e de raça. Minha proposta é romper com o que chamo de unitarismo estrutural, ou seja, com a ideia de uma estrutura difusa de desigualdade que determina de fora as chances das pessoas nos diferentes sistemas sociais. Como alternativa apresento a ideia de desigualdades estruturadas dentro de cada sistema. Embora existam influências das desigualdades do ambiente sobre as desigualdades do sistema, estas influências não são automáticas. Estas influências só podem existir de modo indireto, pois os sistemas sociais desempenham um papel ativo em produzir, reproduzir ou transformar estruturas de desigualdade. Pesquisas empíricas sobre desigualdades educacionais mostram, por exemplo, que desigualdades sociais externas não penetram diretamente na escola. A organização escolar não é passiva, mas sim ativa, decidindo ou não construir desigualdades educacionais com base em desigualdades sociais externas. Minha proposta é uma teoria não determinista sobre a desigualdade que pode ajudar a compreender as desigualdades existentes no Brasil como o resultado de práticas e decisões organizacionais dos mais diversos tipos. Trata-se de observar como o Estado e suas diversas organizações, as empresas, as escolas, os tribunais constroem estruturas de desigualdade de classe, gênero, raça etc. Um aspecto importante de minha proposta é a existência de uma única e mesma sociedade mundial e a recusa em falar de sociedades nacionais. O Brasil não é uma sociedade com uma estrutura de desigualdade própria, mas sim um Estado-nação integrado nesta sociedade global. Isto significa que as desigualdades dentro do Brasil precisam ser relacionadas com desigualdades entre o Brasil e outros países. Não apenas pessoas são colocadas em posições desiguais em relação a outras pessoas. Isto também ocorre com países. Desigualdades são estruturas construídas, reproduzidas e transformadas por diferentes práticas sociais que frequentemente geram efeitos cumulativos intergeracionais, mas estes efeitos podem ser interrompidos por outras práticas como as políticas públicas e também por processos de mudança estrutural em cada sistema. Desigualdades são, portanto, estruturas contingentes: não precisam ser como são e podem ser substituídas por outras estruturas.  

ASCOM / UENF – Como você analisa as causas da desigualdade no Brasil? 

Roberto Dutra – O livro não analisa diretamente as desigualdades no Brasil. O que posso oferecer são afirmações gerais que precisariam ser especificadas, corrigidas e enriquecidas em uma análise empírica sobre estruturas de desigualdades que se destacam em nosso país. As desigualdades mais graves no Brasil são o resultado de práticas do presente que reforçam processos de acumulação de vantagens e desvantagens. As desigualdades do passado são evidentemente importantes, mas sua importância é sempre decidida e atualizada no presente das práticas sociais, nos níveis micro, intermediário e macro da vida social. Tomemos como exemplo o caso da chamada “herança da escravidão”. O passado de trabalho escravo em massa foi certamente um obstáculo estrutural à inclusão dos libertos e de seus descendentes nos diferentes sistemas da sociedade: na economia, no ensino, na política, e até mesmo na esfera da vida afetiva em família. Mas esta “herança da escravidão” não determinou de modo necessário a exclusão dos negros na sociedade pós-escravista. O significado do passado é definido no presente de práticas e decisões sistêmicas, como a decisão de bloquear o acesso dos negros à propriedade da terra, a direitos trabalhistas, à educação etc. Não é uma estrutura do passado que se projeta por si mesma no presente de sistemas sociais que reproduzem passivamente esta estrutura. É o presente que seleciona e atualiza o passado. São decisões e práticas que selecionam e reiteram ativamente as estruturas de desigualdade já criadas, em um horizonte de possibilidades relativas de mudança estrutural. Na verdade, mesmo a reprodução de estruturas do passado não é meramente reprodução; inovações são sempre introduzidas, ainda que as mesmas populações permaneçam com vantagens ou desvantagens relativas entre si. A acumulação de desigualdades econômicas, educacionais, políticas e jurídicas que afetam negros, mulheres e pobres, assim como outras categorias, é formada por estruturas plurais de desigualdade que são acopladas de modo mais forte entre si, criando polarizações entre categorias sociais cuja participação nos sistemas sociais não produz pontos de contato e cooperação. A existência de estruturas de desigualdade localizadas em certas organizações e contextos não é o grande problema do Brasil. O igualitarismo pleno não é possível nem desejável em nenhum contexto, pois ele viola outros valores sociais como liberdade e mérito. O grande problema é a acumulação de vantagens e desvantagens em diferentes sistemas por parte de determinadas categoriais de classe, de gênero e raça, ou seja, quando estas categoriais se combinam com assimetrias que tendem a ser reproduzidas em vários sistemas e contextos, inviabilizando não só a mobilidade, mas também desacreditando a própria expectativa de que o intercurso social pode ocorrer de forma relativamente independente de classe, gênero ou raça. Este tipo cumulativo e generalizado de desigualdade é um traço do Brasil, mas não é uma fatalidade definida por nenhum mal de origem e muito menos uma peculiaridade brasileira ou de países do chamado “sul global”. Ele também está presente em países ditos desenvolvidos como os EUA, Alemanha, Inglaterra e França.   

ASCOM / UENF – Por que parece tão difícil promover, de fato, a igualdade social, diminuindo por exemplo a distância entre ricos e pobres? 

Roberto Dutra – A resposta mais comum é a que coloca a moral no lugar da análise sociológica: a desigualdade não diminui porque ricos, brancos e homens controlam os mecanismos e decisões que produzem e reproduzem seus próprios privilégios. Embora o interesse na reprodução do privilégio e da desigualdade tenha certamente um papel, ele não explica sociologicamente o processo de reprodução ou mudança das estruturas de desigualdade.  Isto seria o caso se ricos, brancos e homens constituíssem coletividades organizadas que controlassem diretamente o intercurso da vida social. Mas a sociedade é diferenciada e complexa demais para isso. A reprodução das desigualdades é o resultado de práticas e decisões organizacionais em empresas, escolas, organizações políticas, jurídicas e outras, que produzem a categorização desigual de pessoas em termos de classe, gênero e raça. A existência de desigualdades entre ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres não é o resultado de categorias e estruturas que antecedem o funcionamento de sistemas sociais como estas organizações que impactam diretamente a chance de vida das pessoas. São as organizações que constroem a adotam ativamente estas estruturas de desigualdade como solução para seus problemas operativos. Podemos trazer como exemplo a prática do perfilamento racial pela polícia e pelo judiciário. Estas organizações adotam o perfilamento racial como solução para o problema de selecionar quem abordar na rua, e com isso produzem e reproduzem claramente uma estrutura racializada de desigualdade que combina atribuição de conduta suspeita ou criminosa com traços físicos. Para desconstruir na prática esta estrutura de desigualdade é preciso encontrar uma estrutura alternativa que oriente a distinção sobre quem abordar ou não abordar e que seja independente de categorias raciais. A dificuldade em promover a igualdade decorre do fato de que as organizações aprendem a resolver problemas e a tomar decisões com base em desigualdades já estabilizadas. Toda organização precisa classificar e excluir pessoas, isto é inevitável. O que pode ser evitado é que isto seja feito com base em categoriais sociais que levem a acumulação de vantagens e desvantagens em vários sistemas sociais. O processo de mudança depende de aprendizados organizacionais capazes de modificar estruturas e rotinas de práticas e decisões. Mas não podemos absolutizar o valor da igualdade e exigir um igualitarismo impraticável e indesejável. O que podemos é vislumbrar formas localizadas e individualizadas de desigualdades, ou seja, que não conduzam nem à acumulação de vantagens e desvantagens em diferentes sistemas, nem a criação de categoriais sociais opostas que vivem, na prática, sempre em sistemas sociais distintos. Em resumo, a busca deve ser por uma igualdade relativa, ou complexa como diria Michael Walzer, cujo ponto de referência na modernidade é a cidadania nacional enquanto esfera de igualdade capaz de assegurar uma vida considerada digna e de valor independente de estruturas de desigualdade existentes em outras esferas. Para que esta igualdade complexa ou relativa seja uma estrutura real é preciso que esta esfera da igualdade seja autônoma o suficiente para evitar que experiência de exclusão social em um sistema funcional – como na economia – gere efeitos cumulativos em outros sistemas como a educação, a política e o sistema jurídico.  

 

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