Congresso da UENF discute Bioética em outubro

A UENF se prepara para mergulhar em um tema ainda pouco conhecido na sociedade, mas cuja necessidade de discussão se torna cada dia mais premente: a Bioética. Cunhado na década de 1970 pelo cientista americano Van Rensselaer Potter, o termo bioética tem uma característica interdisciplinar, pois perpassa todas as áreas do conhecimento. E para fomentar a discussão sobre o assunto dentro da Universidade, será realizado de 25 a 28/10/22 o I Congresso de Bioética do Norte Fluminense (CONBIOET) — Construindo Pontes para um Desenvolvimento Sustentável”.

Nesta entrevista à ASCOM/UENF, o professor João Almeida, do Centro de Biociências e Biotecnologia da UENF (CBB) — um dos organizadores do Congresso — explica um pouco mais sobre este tema:

João Almeida

ASCOM/UENF – Como podemos definir a Bioética?

João – Todos nós com certeza já ouvimos falar da palavra “ética”, mas talvez a tenhamos associado  ou a filósofos ou a médicos. E quando falamos em “bioética”, talvez imaginemos que seja algo como uma “ética para a biologia”. Na verdade, a bioética é um ramo da ética que se preocupa com sua aplicação prática, ou seja, da resolução de problemas do dia a dia, e que visa em primeiro lugar à preservação da vida, na sua forma mais ampla.

ASCOM/UENF – Quando e em que contexto surgiu a Bioética?

João – A bioética surgiu muito associada à medicina e às atrocidades cometidas pelos nazistas durante a segunda guerra mundial, em particular aos experimentos feitos com seres humanos pelos nazistas. No fim da guerra, e com o julgamento dos nazistas no tribunal de Nuremberg, percebeu-se que era preciso refletir sobre aquilo que chamamos de dignidade humana e refletir sobre regras do agir, parâmetros que viessem a orientar a atuação de médicos e cientistas. Hoje essa visão é muito mais ampla, e necessariamente interdisciplinar, buscando refletir não só sobre questões médicas e sociais relativas aos seres humanos, mas envolvendo também questões relacionadas aos animais, ao meio ambiente, e à própria preservação da vida do nosso planeta, tendo sempre a ciência como um dos seus principais pilares.

ASCOM/UENF – Que questões podem ser abarcadas pelo campo da bioética?

João – Quando discutimos questões como o aborto, cuidados paliativos, uso de animais em pesquisa, queimadas, criação de animais, vacinas e fake news, estamos falando de questões bioéticas. Até quando falamos de decisões políticas, como implantação (ou não) de determinadas políticas públicas que podem afetar a vida das diferentes populações e grupos sociais, estamos falando de bioética. Quando falamos da formação de um biólogo, de um médico, de um veterinário, de um advogado, de um zootecnista ou de um engenheiro, com certeza precisamos falar de bioética 

ASCOM/UENF – Qual a importância de incluir esta disciplina nos cursos de graduação e pós-graduação?

João – Eu acho fundamental que a bioética esteja presente em todos os currículos básicos, de todas as profissões. Recentemente fui convidado por um grupo de professores que estão criando o mestrado em Medicina Veterinária da UENF a criar uma disciplina de ética e bioética em veterinária, justamente pela dificuldade que temos de ter essas disciplinas, que são essenciais, em nossas bases curriculares. Há uma defasagem muito grande em nossos cursos quando se trata de bioética , principalmente se considerarmos que é uma área que trata da ética prática, ou seja, da aplicação da ética na resolução de dilemas presentes no dia a dia de todas as profissões. Por exemplo, consultando-se a base de dados do sistema acadêmico da UENF, existem apenas quatro disciplinas sobre bioética ativas em todos os cursos presenciais da UENF, sendo que três são dadas no CCH e uma única disciplina é apresentada no CBB. Esta do CBB se refere apenas, segundo sua ementa, à bioética aplicada a organismos geneticamente modificados e clonagem. Nos cursos à distância, pelo Consórcio CEDERJ, só tenho conhecimento de duas  disciplinas que eu ministro como optativas (Tópicos em Biossegurança e Bioética e Bases da Pesquisa Científica), que tocam no tema, para o curso de Biologia à Distância.

ASCOM/UENF – Quais os principais desafios e complexidades da Bioética na pesquisa científica?

João – O principal desafio da bioética talvez esteja na sua própria essência, pois, diferente do que as pessoas possam pensar quando dizemos que a bioética é uma ética prática, não podemos encará-la como um “manual do certo e errado”, mas principalmente como um processo, ou talvez uma metodologia, que promove o diálogo, de maneira esclarecida, e leva à reflexão para a tomada de melhores resoluções. A bioética abarca decisões que nem sempre são simples.

ASCOM/UENF – Pode citar um exemplo de decisões difíceis no campo da pesquisa científica?

João – Hoje em dia, por exemplo, muito se fala nas técnicas de edição gênica, que são capazes extrair com precisão ou mesmo de reescrever o nosso DNA, que podemos dizer que é o nosso “manual de fabricação”, ou seja, o código contido em nossas células que vai dizer se teremos mais ou menos musculatura, que nos permitiria sermos, por exemplo, excelentes maratonistas ou levantadores de peso. Na ásia já existem animais de corte, como porcos e bois, editados geneticamente para aumentarem a sua produção de carne. Alguém que quisesse poderia utilizar essa tecnologia em seu próprio corpo para se tornar um super atleta (ou mesmo um super soldado), e transmitir esses genes para seus filhos. Isso seria aceitável? Por outro lado, essa tecnologia poderia ser utilizada para tratar doenças que causam distrofia muscular, por exemplo. Nesse caso o uso dessa tecnologia é aceitável? Quais os limites a serem considerados?

ASCOM/UENF – E fora da biologia, você poderia citar exemplos?

João – Quando falamos por exemplo na criação de veículos autônomos, ou naqueles “carros sem motorista”, por incrível que pareça a bioética está presente, pois é preciso pensar que esses veículos também podem ser obrigados a fazer escolhas morais. Digamos que um desses carros atravessa uma ponte e uma pessoa idosa tropeça na calçada  e cai na sua frente. O computador tem a possibilidade de desviar, mas se o fizer, tem probabilidade, na velocidade em que está, de cair da ponte. Seus passageiros são uma mulher com um bebê de colo. Ele deve tentar frear e seguir em frente, atropelando o idoso, ou frear e desviar, se precipitando da ponte com a mulher e o bebê? E se ele estivesse transportando apenas equipamentos, a programação deveria ser a mesma? Outras questões hoje estão mais próximas, por exemplo, um paciente terminal de câncer que já sofreu várias intervenções, pode escolher não ser ressuscitado, caso tenha uma parada cardíaca? O médico ou enfermeiro poderia se recusar  a cumprir a determinação do paciente? O zootecnista deveria aconselhar a criação de uma maior densidade de animais, o que causaria um pouco menos de conforto ao animal mas aumentaria o lucros da produção? Quais são os limites? Como se vê, essas são questões reais, ou muito próximas da realidade, e que muitas vezes já fazem parte do nosso dia a dia. Não existem respostas prontas ou fáceis, mas com certeza devemos refletir sobre elas

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