O advento de uma sociedade cada vez mais tecnológica e distante da natureza transformou a mais vital das necessidades humanas — a alimentação — em um hábito muitas vezes automatizado. Qual a última vez em que você se perguntou de onde vem e como são produzidos os alimentos que entram na sua mesa? Para conscientizar a população quanto à necessidade de se interessar sobe o que come, de onde vêm os alimentos e como são plantados, foi criado no ano passado o Projeto “O veneno nosso de cada dia”, coordenado pela professora Maria Angélica Vieira da Costa Pereira, do Laboratório de Sanidade Animal (LSA) da UENF.
O projeto abrange os municípios de Campos dos Goytacazes e São João da Barra (RJ). Em sua origem, as ações eram voltadas para a divulgação de informações em feiras e mercados nestes municípios. Mas, com a pandemia de Covid-19, o projeto vem utilizando apenas recursos online. Foi criada uma página no Instagram na qual periodicamente são postados textos informativos sobre a questão alimentar.
“De início, o projeto era voltado para os produtos de origem animal, já que os seus integrantes são todos da área de Medicina Veterinária. Mas ampliamos também para os produtos de origem vegetal, uma vez que eles também estão ligados à produção animal. É o caso dos grãos, por exemplo, que são utilizados nas rações”, explica a professora.
O trabalho tem a participação de três alunos do curso de Medicina Veterinária da UENF, duas bolsistas Universidade Aberta (uma médica veterinária e outra de nível médio cursando o IFF), além de dois voluntários. Uma das questões abordadas é o uso de agrotoxicos.
“Não há uma política para embarreirar o cultivo de vegetais e a criação de animais sem esses venenos. Após a ‘revolução verde’, os agropecuaristas só sabem produzir de forma a contaminar com agrotóxicos, sejam eles para vegetais ou animais, como é o caso dos carrapaticidas, trazendo impactos para o solo, a água dos rios, lagoas e lençóis freáticos. Dizem que o agronegócio não se sustenta sem tais itens”, explica Angélica.
Segundo ela, também é papel dos cursos de Medicina Veterinária e Agronomia abrirem o leque de opções, inserindo disciplinas que tratem da questão.
“É importante que estes cursos ofertem outras formas de se tratar animais e plantas, sem contaminar água, solo , animais e também o ser humano, o lavrador, o tratador de animais. Estes estão em constante risco, mesmo quando utilizam equipamentos de proteção. Isso é coisa rara no campo e muitos têm preguiça de usar, dizem que já estão acostumados e que a indumentária esquenta e passam mal”, diz.
Ela ressalta que os produtores atualmente são obrigados a comprar produtos das empresas multinacionais, produzindo alimentos que, quando analisados, em sua maioria estão fora dos parâmetros prescritos pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para o consumo humano e também animal, pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS).
“No entanto, quando a produção é para a exportação, o país segue à risca as cartilhas da Comunidade Europeia, pois, se não o fizer, não vende nada. Há um tempo a China devolveu carne de frango brasileiro pois tinha altos níveis de hormônios e antibióticos”, afirma Angélica, acrescentando que uma ação importante será a criação de um mestrado em Agroecologia na UENF, para que seja possível realizar pesquisas regionais nesta área.
Segundo Angélica, diversos problemas de saúde podem ser acarretados pelos agrotóxicos, como cólicas em recém-nascidos ao consumirem leite de mães que trabalham na lavoura e estão contaminadas, até efeitos cumulativos das drogas, que produzem ao longo do tempo diversos cânceres, como de pele, fígado, rins, pulmão, olhos etc. Também há muitos processos alérgicos e asmáticos, além de choque anafilático por superdosagem, entre outros problemas.
“Exposição de contato e exposição acumulativa levam a doenças que impossibilitam o trabalhador. Eles deveriam receber insalubridade, mas isso é coisa difícil no campo. Os trabalhadores acabam vivendo com péssima qualidade de vida e saúde, tendendo cedo a estarem com males provenientes deste tipo de atividade”, diz.
Dentre os produtos vegetais, a maioria do que se consome tem resíduos de agrotóxicos, mas os que mais apresentam são os tomates, morangos, maçã e cítricos. Já entre os produtos de origem animal, encontram-se os laticínios e a carne vermelha.
Revolução Verde – Na página do Instagram, há muitas informações relacionadas aos objetivos do projeto. Busca-se explicar, por exemplo, o contexto histórico da chamada “revolução verde” — modelo de produção agrícola iniciado na década de 1960, calcado em inovações tecnológicas — agrotóxicos, fertilizantes sintéticos e máquinas — com o objetivo de alcançar maior produtividade. O Brasil foi um dos países aliados dos EUA durante a Guerra Fria a receber incentivos para iniciar a sua própria “revolução verde”.
O modelo, que criaria o agronegócio, trouxe consigo muitos impactos ambientais, como o desmatamento, erosão genética, extinção de espécies vegetais e animais, contaminação do solo e da água, entre outros. “O homem, apesar de ser o agente causador desses impactos, também sofre as consequências, não só por acabar com os recursos naturais que precisa para sobreviver mas também com a deterioração de sua saúde, pois consome esses alimentos produzidos nesse modelo baseado no uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos”.
“O atual modelo agropecuário brasileiro voltado para o latifúndio, a monocultura e a exportação é lucrativo para as grandes empresas da agroindústria e não há benefícios para a sociedade e o meio ambiente (…) Décadas após a implantação desse modelo agrícola, podemos observar que o Brasil está entre os maiores exportadores de commodities, mas ainda existem milhares de brasileiros passando fome”.
O Projeto Veneno também explica, de forma didática, o que são agrotóxicos: “substâncias químicas utilizadas na indústria agrícola com o objetivo de modificar a flora e fauna presente em uma plantação e controle na armazenagem do produto. São utilizados para combater insetos e animais que se alimentam da lavoura, fugos ou bactérias que causam doenças nas plantas e também para o controle de outras plantas que são tidas como ervas daninhas”, dividindo-se em herbicidas, fungicidas/bactericidas e inseticidas.
Outro tema abordado são os transgênicos, ou Organismos Transgenicamente Modificados (OTMs): “espécimes modificados geneticamente que, diferente da forma natural de adquirir novos genes, que é através da polinização ou cruzamento, adquirem novos genes pela inserção artificial.”. Os transgênicos — cujo cultivo e comercialização foram legalizados em 2005 no Brasil — também são o resultado das tecnologias introduzidas com a “Revolução Verde”.
“As biotecnologias modernas são ferramentas importantes e de grande potencial, porém a grande problemática em relação aos organismos geneticamente modificados é que, na análise de riscos, seus efeitos biológicos não podem ser previstos. Existem diversas incertezas científicas. O consumo pode gerar riscos à saúde humana, como toxicidade, intolerâncias e alergias”.