No momento em que o ex-presidente Bolsonaro é considerado réu pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe de Estado, o presidente Lula chega à metade de seu terceiro mandado com a popularidade em baixa. Diante desse cenário, qual o futuro político do Brasil? Lula conseguirá se reeleger ou deixar um sucessor até 2031? Há o risco de o bolsonarismo voltar ao poder ou mesmo outros governos de extrema direita?
Para analisar esta questão, a ASCOM/UENF ouviu o cientista político Hamilton Garcia, professor do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE) do Centro de Ciências do Homem da UENF (CCH), e o teólogo e historiador Fábio Py, coordenador de disciplina do curso de Licenciatura em Pedagogia da UENF/CEDERJ e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas Sociais do Rio de Janeiro (Iuperj).
“Caixa de ressonância” explica ascensão da extrema direita no Brasil

O professor Fábio Py ressalta que o governo Lula vem sendo fragilizado pelos setores hegemônicos da sociedade brasileira (como empresários e latifundiários), que a cada dia se mostram mais descontentes com o atual governo, em grande medida por estarem ligados a uma agenda anterior, do governo Bolsonaro.
Pesquisador das relações entre religião e política, Py vê similaridades entre o que acontece no Brasil e o fenômeno chamado “caixa de ressonância”, descrito pelo sociólogo americano William Connolly para explicar a política das décadas de 1980 e 1990 nos Estados Unidos, quando foi possível alavancar as candidaturas republicanas de caráter antidemocrático. A “caixa de ressonância” é o bombardeio maciço de mensagens através das diversas mídias, ação que hoje é favorecida pela força das redes sociais. E uma das arestas dessa caixa é a estrutura das igrejas.
Para Py, o que vem ajudando a justificar a ascensão e manutenção de governos mais autoritários de traço cristão e fascista — os chamados “cristofascistas” — é justamente a construção dessa “caixa de ressonância” feita de mensagens de mídias, consolidadas em arenas públicas e em setores específicos da sociedade (como latifundiários, igrejas cristãs fundamentalistas etc).
Segundo Py, a construção desta “caixa de ressonância” começa com as jornadas de julho — os movimentos de rua de 2013 — e vem se estruturando desde então, culminando na eleição de Bolsonaro em 2018. Desde 2013, esta “caixa” vem sendo testada, submetida a novos temas e à construção de temas específicos, ligados à família tradicional brasileira. De acordo com o historiador, a Frente Parlamentar Evangélica é a responsável principal pela montagem dessa “caixa”.
— É ela que monta a caixa, que vai construindo, tecendo, até começar a fervilhar e construir noticiários, com a participação dos setores hegemônicos, como o empresariado e os latifundiários brasileiros, e o apoio de forças externas oriundas de instituições religiosas americanas. Em 2018, com a eleição de Bolsonaro, nós temos o primeiro show dessa caixa de ressonância — diz, acrescentando que a Frente Parlamentar é toda versada em alguns missionários religiosos ou figuras ligadas a missionários que vêm dos Estados Unidos. Formada por 219 deputados e 26 senadores, a Frente Parlamentar Evangélica foi criada em 2003, reunindo políticos ligados a religiões de cunho cristão.
De 2019 a 2022, segundo o professor, ocorre a ampliação da “caixa de ressonância”, tendo à frente o próprio Estado Brasileiro, que passa a financiar fake news de forma direta, com mensagens de ódio aos “diferentes”. Em outras palavras, com a eleição de Bolsonaro, essa “caixa” se consolida.
— Nesse período temos um governo que é absolutamente ligado a essa tradição autoritária, do fascismo brasileiro. Mas como ele fica no poder? Com a montagem dessa caixa de ressonância no meio do Estado Brasileiro. É impressionante o número de mensagens pró e contra os outros setores no governo Bolsonaro — diz.
Py faz um paralelo com o que ocorreu na ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, em 1933. Ele observa que, segundo alguns historiadores, o que favoreceu a subida de Hitler ao poder foi um funil imenso de mensagens e informações divulgadas para a sociedade.
— Naquela época, era um outro tipo de comunicação, feita no rádio, através de panfletos, nas igrejas etc. Hoje ocorre inclusive de forma monetarizada, se a gente considerar a rede social como sendo um lugar das extremas direitas mundiais. Então monta-se essa caixa de ressonância, esse sistema midiático internacional de extrema direita que consolida as mensagens, financia na verdade três vezes mais as mensagens de ódio da extrema direita do que de setores de esquerda, e aí então essa coisa ganha uma nova proporção — afirma.
O fim do governo Bolsonaro não interrompeu o processo. Embora o Estado Brasileiro não esteja mais à frente dessa “caixa de ressonância”, na opinião de Py, ela segue montada. Em outras palavras, a sociedade brasileira continua sob o seu impacto e ela ainda segue muito eficaz em seu processo.
Segundo o professor, o governo vem tentando cumprir sua função, mas é impotente diante de uma “caixa de ressonância” com tantas mensagens diárias jogadas nas redes. Para ele, é muito difícil lidar com essa situação.
— Pode mudar um pouco a configuração. Mas a “caixa” segue sendo muito eficaz no Brasil. Os setores democráticos têm muita dificuldade em lidar com um processo tão denso de midiatização da vida, como por exemplo o que as redes sociais proporcionam hoje. Muito difícil construir canais de verificação de mensagens falsas. Como fazer isso? É um debate para a gente. Não adianta só financiamento de agências de checagem — questiona.
Para ele, o futuro do bolsonarismo ainda é incerto. Uma eventual prisão de Bolsonaro, segundo ele, tanto poderia ser um grande fiasco político para ele como produzir o efeito contrário.
— É difícil prever, mas algumas correntes dizem que a prisão dele pode ser a consolidação de uma mitologia bolsonarista. Já a fuga dele do país pode criar um clamor messiânico — observa.
Na opinião do professor, com ou sem a figura de Bolsonaro, os setores da extrema-direita não estão derrotados. Ele vê com apreensão a ascensão de figuras como Pablo Marçal, que, além de ser genuinamente evangélico — fato questionável, segundo Py, com relação à figura de Bolsonaro —, entende muito bem o universo das mídias sociais. Fato que ficou notório nas eleições à Prefeitura de São Paulo.
— Outro problema é o envelhecimento da figura de Lula. Ao longo do tempo, ele foi queimando todas as figuras ao seu redor. E agora, quem será seu sucessor? Já era para se estar vislumbrando isso, apresentando novos caminhos, possibilidades. Não temos uma figura de esquerda que possa sucedê-lo — diz.
Py chama a atenção para a ligação histórica do Brasil com governos autoritários. Ele ressalta que o Império durou até o final do século XIX, o que não é tão distante de nosso tempo. Governos autoritários também se seguiram ao período monárquico. Em 1930, Vargas fica 10 anos no poder com um governo extremamente autoritário. E, na década de 1960, ocorre a ditadura militar, que dura 21 anos.
— Também é importante dizer que os governos sempre fizeram uso da religião para se manter no poder. Até a redemocratização, em 1988, os governos sempre foram muito ligados ao catolicismo.
Na sua avaliação, essa herança autoritária ainda exerce influência na população, o que pode ser constatado na dificuldade da maioria das pessoas em discutir política. A polarização entre esquerda-direita, por exemplo, é algo que Py acha saudável para uma democracia.
— O brasileiro aprendeu a não discutir política por conta dessas instâncias autoritárias. Por isso vê a polarização como um problema, quando deveria ser o contrário. Se temos uma polaridade de candidaturas, de pensamentos políticos, isso é bom. Pior se só houvesse um pensamento predominante e não se pudesse discutir. As pessoas não sabem discutir, simplificam demais: ou é santo ou demônio. E todos sabemos que não existe santo na política — diz.
Forte oposição e contexto internacional são desafios para o governo Lula
Na opinião do professor Hamilton Garcia — que estudou os partidos de esquerda em seu mestrado (PCB, 1995) e doutorado (PT, 2005) — para entender o atual momento brasileiro e as dificuldades encontradas por Lula, é preciso lembrar que sua eleição se deveu mais à rejeição de Bolsonaro do que à sua persona ou programa político. Setores de centro, à esquerda e à direita, votaram em Lula ou se abstiveram de votar para impedir ou não colaborar com a reeleição de Bolsonaro, cujo governo demonstrou sua inaptidão para a coisa pública. A sua não consagração como presidente, em 2022, constituiu fato raro desde a instituição da reeleição em 1997. Até Dilma — que depois foi legalmente destituída pelo Congresso em meio a forte impopularidade — conseguiu se reeleger.

O que também ajuda a explicar o resultado da eleição foi a ideia vendida por Lula e pelo PT de que seria formado um governo de coalizão com base em sua experiência anterior, quando governou com um vice e ministros de centro.
— O problema é que, uma vez no poder, Lula fez um governo petista com coadjuvantes de centro, desconsiderando o delicado quadro de sua última eleição, num contexto econômico também muito distinto de seus dois outros governos, quando a China crescia aceleradamente, puxando para cima os preços das commodities que o Brasil exportava. Um quadro muito diferente do de agora, marcado pela reação nacionalista estadunidense ao nacionalismo chinês, inaugurado por Trump em 2016 e agora radicalizado em seu segundo mandato, abalando os pilares do livre-comércio mundial.
Na sua opinião, existe um quadro novo, para o qual Lula e o PT, ao que tudo indica, não estavam preparados: o desgaste da imagem de Lula e seu partido, a polarização política radicalizada, com uma oposição que ele nunca antes havia enfrentado, e o contexto internacional desafiante, ao lado de uma evolução social interna que popularizou ideais liberais antes circunscritos à classe-média alta.
— Se a direita conseguir se apresentar até 2026 com uma cara nova, combinando conservadorismo e pragmatismo, as coisas podem ficar bem difíceis para Lula. Ele pode perder o apoio do Centro, que lhe garantiu a vitória em 2022. Do contrário, se o bolsonarismo emplacar um nome do clã para a sucessão e este chegar ao 2º turno, Lula aumenta as chances de vitória — afirma.
Para ele, as eleições não se darão entre candidatos democratas e extremistas de direita, mas entre candidatos de vários matizes ideológicos, inclusive radicais de esquerda e direita, em busca do exercício efetivo do governo ou apenas de amplificar sua voz na esfera pública (“acumulação de forças”) —, em alguns casos pensando somente em seus negócios privados.
Ele ressalta que o seguido fracasso dos governos, de variados matizes, em combater as três pragas da democracia brasileira (subdesenvolvimento, corrupção e violências) continuará beneficiando o surgimento e empoderamento de grupos extremistas passadistas, quer de viés revolucionário ou reacionário.
— É uma ilusão achar que a polarização radical que vivemos, inclusive em escala global, não tem razões estruturais que afetam diretamente a vida das pessoas, sendo gerada artificialmente por extremistas que, por isso, precisam ser contidos para que a ameaça cesse. Isso, simplesmente, não basta. Os extremistas são surfistas e, se as ondas ficam cada vez mais altas — vale dizer, a vida cada vez mais difícil na base da sociedade e prazerosa em sua cúpula — eles procurarão surfá-las, de maneira cada vez mais radical, para alcançarem seu objetivo de uma “sociedade justa” (esquerda) ou da retomada da “felicidade perdida” (direita), arrastando as multidões raivosas/ressentidas sob o beneplácito das desiludidas. Quem assiste ao espetáculo, laborando e estudando, apenas torce para que atores políticos e intelectuais responsáveis, à esquerda e à direita, sejam capazes de apresentar programas de governo consistentes que desidratem os raivosos e convertam os desiludidos, novamente, em esperançosos. Há tempo para isso, pois estamos a 19 meses das eleições, mas o governo atual deve agir rápido pois perdeu muito de sua credibilidade — conclui.
(Jornalista: Fúlvia D’Alessandri – ASCOM/UENF)
Referências bibliográficas:
CONNOLLY, Willaim. The Evangelical-Capitalist Resonance Machine’, in Miguel Vatter (ed.), Crediting God: Sovereignty and Religion in the Age of Global Capitalism, New York, 2011.
EVANS, Richard J. Conspirações sobre Hitler: o Terceiro Reich e a imaginação paranoica. São Paulo: Planeta do Brasil, 2022.
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.
PY, Fábio. Padre Paulo Ricardo: trajetória política digital recente do agente ultracatólico do cristofascismo brasileiro. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 13, nº 34, set./dez. 2021.