Socióloga da UENF avalia a violência contra a mulher na pandemia

Com a pandemia da Covid-19 e o isolamento social, diversas minorias estão sujeitas a serem vítimas de agressão. O problema é agravado com as menores possibilidades de denúncia e maior tempo de confinamento com o agressor. Levantamentos do Tribunal de Justiça e do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro apontaram o aumento significativo nos casos de lesão corporal e de violência doméstica no estado.

Para abordar o tema, a ASCOM/UENF fez uma entrevista com a socióloga Luciane Soares (UENF) com o objetivo de avaliar a influência da pandemia no aumento do número de casos de violência contra a mulher e outras minorias.

Luciane Soares é socióloga e pesquisadora da UENF

ASCOM – Diante de todas as mazelas sociais que o Brasil enfrenta, a violência contra a mulher tornou-se mais um desafio durante a pandemia da Covid-19. Como você vê o aumento no número de casos, principalmente no estado do Rio de Janeiro, que já é acometido pela violência de um modo geral?

LUCIANE – Estamos vivendo agora uma situação sui generis, que é essa convivência em casa devido ao isolamento. Pessoas que tinham suas rotinas de trabalho e estudo passaram a ter um cotidiano confinado, e esse é um dos elementos para o aumento da violência contra a mulher. Por outro lado, os acessos a redes de apoio também se tornam mais complicados. Todas as relações ficaram extremamente difíceis. E a forma da representação social construída nos papéis de gênero faz com que muitos homens só se reconheçam na sua masculinidade no mundo do trabalho, muitas vezes rejeitando as atividades domésticas. Isso sobrecarregou as mulheres durante a pandemia. Os filhos estão em casa, mas também têm aula, e muitos maridos partem para o videogame, para as redes sociais. Agora, isso não necessariamente implica no tipo de violência doméstica física, mas de uma maneira geral. É claro que estamos falando de uma situação de exceção, que pode produzir, sim, situações de violência dentro desse quadro.

ASCOM – A saúde e a educação têm sido constantemente negligenciadas pelo governo federal durante a pandemia. Recentemente, comemoramos os 72 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Qual a importância de discutir a violência contra a mulher neste contexto?

Há algum tempo eu tenho falado sobre feminicídio e coletado dados para pesquisas. E é sempre impressionante. Recentemente recuperei o caso da Poliana Borges, em Goiânia. A publicitária, de 26 anos, foi assaltada porque havia uma encomenda de um carro. No entanto, ao verem Poliana, os assaltantes resolveram mudar o plano e estuprá-la. Na medida em que o plano saiu do controle, eles a mataram com oito tiros e queimaram o carro. Esse é um dos inúmeros casos de mulheres que são violentadas no país. Há aquelas estupradas pelos próprios companheiros; meninas de 10 anos abusadas pelos padastros e avôs, entre outros casos, sendo que muitos destes acabam em morte. Então nós não estamos diante de casos isolados, mas de um fato social. E é absolutamente fundamental observar que esta condição de violência contra a mulher está para além das classes sociais e tem uma concentração, obviamente, entre mulheres não brancas. É claro que este problema não se restringe apenas ao Brasil. E é absolutamente importante que a gente pare de tratar o abusador, o assassino, como um homem que sofre de algum distúrbio mental, de alguma patologia específica, porque se fosse isso não seria um fenômeno tão comum em todas as famílias, em todas as classes e da forma como nós temos visto a cada dia, com uso de violência, que vai de pedras, fios, facas, armas brancas. As modalidades são inúmeras e de extrema crueldade. Isso nos leva à obrigação de repensar que não estamos diante de uma patologia do indivíduo, mas de uma questão social absolutamente central no nosso cotidiano.

ASCOM – Nota-se a necessidade de uma rede de apoio para que a mulher, que muitas vezes mora com o agressor, denuncie os casos de violência. Você considera eficaz essa rede de apoio? Acredita que o atendimento e acolhimento à mulher vítima de violência poderia ser otimizado?

LUCIANE – A rede de apoio é fundamental para que essa a vítima possa sair de casa. De acordo com os casos que estudei nesses últimos 24 meses, há duas características que chamam a atenção: em primeiro lugar, um grande número de casos nos quais as mulheres têm independência econômica, ou seja, não há uma correlação entre dependência do companheiro e permanência dentro da relação. São mulheres que têm autonomia financeira. Em segundo lugar, muitas delas são mortas pelos ex-companheiros exatamente quando pedem o fim da relação, porque eles não aceitam o fim daquela união. E, mesmo com a medida protetiva, elas acabam morrendo. Então vejam a dificuldade. Quando as pessoas criticam as mulheres que permanecem numa relação abusiva, como se isso fosse uma vontade própria, elas não têm a empatia nem a compreensão. Ao se separar de um marido violento, que inclusive já fez ameaças, a mulher pode ser realmente morta. Nós estamos passando por um processo muito grave, no qual os homens, ao perderem essa centralidade social de provedores, que foi sempre a forma clássica da divisão do trabalho social e do trabalho doméstico, sentem uma espécie de inutilidade dentro de uma divisão que era central na construção da sua personalidade.

ASCOM – Até quando considera que as minorias vão sentir os reflexos sociais causados pela pandemia da Covid-19? Além das mulheres, quem mais sofre com a falta de atenção do poder público e o que pode ser feito para sanar essas diferenças?

LUCIANE – É um conjunto dentro desse quadro. São as mulheres, dentro desse quadro as mulheres negras, as crianças e os idosos. Porque os idosos precisam de cuidados, como redes de terapia, remédios, profissionais de fisioterapia, médicos e a visita de vizinhos, de parentes. O isolamento social é particularmente danoso pra pessoas que têm uma fragilidade física, emocional e doenças que requerem um acompanhamento constante, como é o caso dos idosos. Por outro lado, se as pessoas que os visitam — não só a família como os seus cuidadores — não têm o cuidado social do isolamento, podem contaminar esses idosos. Temos esses grupos que estão na periferia, mas que também estão na classe média e possivelmente na classe média alta, no caso dos idosos, e que por conta do isolamento não conseguem acessar os cuidados necessários e podem padecer de outras doenças, o que é um efeito indireto da pandemia de Covid-19. São aquelas pessoas que não vão padecer com o coronavírus, mas com outras doenças que são agravadas durante a quarentena. Da mesma forma, o que eu percebi através das pesquisas, principalmente na Portelinha (comunidade que fica ao lado da UENF), é que as pessoas podem não morrer de Covid, mas podem morrer de fome. É uma situação da volta do Brasil ao Mapa da Fome. Uma alimentação de baixa qualidade, um descontrole no que nós temos consumido também nos torna mais vulneráveis, e é isso que nós temos visto em situações de extrema pobreza na cidade de Campos.

ASCOM – Qual é a importância social de trazer um debate mais aprofundado sobre a violência doméstica para a população? De falar sobre o ciclo da violência que é vivenciado pelas vítimas, os diversos tipos de agressões (morais, psicológicas, físicas) que precedem maiores ofensas à integridade da mulher, e então, o feminicídio?

LUCIANE – Nós estamos avançando no debate da violência contra a mulher. Até a década de 90, esse tema ainda não era tão central. Os chamados “crimes de honra” foram largamente aceitos socialmente, embora não juridicamente, até pouco tempo atrás. Um caso clássico foi o assassinato de Ângela Diniz por Doca Street, na década de 70, que alegou ter matado por amor e foi inocentado no primeiro julgamento. As pessoas naquela época acreditavam que um homem traído tinha o direito de “lavar a honra”. Durante muito tempo, a forma da educação sentimental das mulheres passou pela ideia de um príncipe. Quando dentro de um casamento as situações de gênero mostravam a hierarquia que estava posta, o poder do homem sobre a mulher, as traições que deveriam ser aceitas, isso se torna um “caldeirão explosivo”. A AIDS obrigou a nossa geração a mudar seus hábitos. Foi grande o número de homens que infectou as suas companheiras. Não sei se isso continua, mas há dez anos havia um número muito maior de infectados em pessoas com uma idade acima de 40 anos e, muitas vezes, dentro de um relacionamento, do que entre jovens ou mesmo dentro dos grupos de risco. Então nós avançamos na discussão do problema, hoje temos mais mulheres denunciando a violência e também mais mulheres não aceitando relações abusivas. Ao mesmo tempo, eu me pergunto quando vejo, diariamente, a forma dos assassinatos, se eles sempre tiveram o mesmo padrão e ele não era público. Ou seja, se nós temos mais mulheres denunciando ou se nós temos mais casos de assassinatos contra mulheres e uma banalização do mal. A forma como nós construímos as relações leva, muitas vezes, a uma tragédia. A própria forma de casamento talvez tenha mostrado a necessidade de repensarmos essa instituição. Talvez a forma em que nós assentamos a instituição casamento tenha que ser repensada, porque não é aceitável a forma como as mulheres estão sendo, literalmente, abatidas por seus companheiros, por não aceitarem um não.

ASCOM – A violência doméstica é um problema de caráter histórico e estrutural em nosso país. Quais estruturas sociais propiciam a transformação de nossas meninas e mulheres em vítimas? Quais padrões repassados permitem a normalização de comportamentos abusivos e o fortalecimento de amarras sociais?

LUCIANE – A construção dos papéis sociais, que começa na mais tenra infância, com aquilo que é atribuído ao masculino e ao feminino. A violência contra mulher geralmente começa na casa dos pais e mães. O relacionamento abusivo é apreendido dentro de casa. O número de abusos, de violências, surras injustificadas, palavras desabonadoras da inteligência feminina, palavras de comparação com outras, tudo isso constrói uma psique fragilizada. Uma psique fragilizada que se encontra com uma psique violenta vai redundar em uma relação abusiva. Essa relação vai ser constituída em cima do poder de um dos polos. Respeitar uma mulher é algo que precisa ser feito desde a tenra idade. Perguntas como se o rapaz já começou a ter relações sexuais, se ele “tá pegando”, isso tem que parar. Porque é como se a masculinidade residisse no órgão genital masculino e ela precisasse ser algo violento, algo que só pudesse se satisfazer por meio de um domínio, que muitas vezes não é consentido. E aí a gente tá falando aqui do estupro, não é? Mas que muitas vezes também acontece dentro do casamento e isso é resultado de uma socialização. Nós não discutimos sexualidade na escola como deveríamos e depois também não fazemos isso na universidade.

ASCOM – O cenário político atual, em que temos um presidente com histórico de intolerância às minorias, poderia ter alguma influência neste cenário que estamos vivenciando, de aumento dos casos de violência contra a mulher?

O presidente incorpora e vocaliza uma energia, um movimento social que não é recente. Todo o trabalho do avanço do feminismo mundial produz resistência por parte daqueles que não aceitam essa autonomia das mulheres, e o presidente é um desses tipos sociais, que tem uma fixação em palavras de baixo calão, com comportamento misógino, violento. Chegamos ao ponto de ter sido feito um adesivo ofensivo a uma presidenta, legitimamente eleita, no qual a bomba da gasolina era um estupro. Os casos em outros países, onde há mulheres na política, são também de desconstrução pública que denotam estupro, morte, destruição do corpo das mulheres. Então não se resume ao Brasil, por isso que eu estou minimizando aqui o lugar do presidente, porque senão parece que nós estamos falando só do Brasil. Estamos falando da Argentina, com a Cristina Kirchner, dos Estados Unidos, com a Kamala Harris, das duas candidatas à presidência no México mortas. Nós estamos falando do assassinato de Marielle Franco e de uma série de assassinatos, como,por exemplo, a morte do Moa do Katendê. Durante a eleição de 2018, entre o início da eleição e o dia da eleição, nós tivemos aproximadamente 10 mortes em função de discussão política. E isso é novo no Brasil, essa forma das mortes. Então é claro que ele tem um papel vocalizador e potencializador, mas não está isolado no ocidente e esse não é um problema que se resume ao Brasil.

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