Avanços do Papado de Francisco podem estar em risco

Para o teólogo e historiador Fábio Py, o novo papa deve ter um perfil mais conciliador dentro da estrutura da Igreja, podendo ocorrer um retrocesso naquilo que Francisco defendia: uma instituição mais voltada para os anseios da sociedade

Professor Fábio Py

Enquanto o mundo aguarda o Conclave que vai escolher o novo papa — que deve começar nesta quarta-feira, 07/05/25 —, a apreensão em torno da continuidade ou não dos avanços empreendidos pelo papa Francisco toma conta dos debates. É certo que Francisco não conseguiu uma reformulação estrutural da Igreja, mas, segundo especialistas no assunto, não se pode negar que o papa argentino deu passos importantes na direção de uma Igreja Católica mais próxima da sociedade.

O teólogo e historiador Fábio Py, coordenador de disciplina do curso de Licenciatura em Pedagogia da UENF/CEDERJ e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Instituto Universitário de Pesquisas Sociais do Rio de Janeiro (Iuperj), acredita que o próximo papa deverá ter um perfil mais conciliador dentro da estrutura interna da Igreja — diferentemente de Francisco, que, ao longo de seus 12 anos de mandato, provocou muita tensão interna por seus posicionamentos mais progressistas ligados à chamada “teologia do povo” — uma adaptação amena da teologia da libertação na Argentina ligada ao jesuíta Juan Carlos Scannone, sem instrumental marxista. 

Na sua opinião, Francisco levantou questões que nunca antes haviam sido colocadas em pauta na Igreja Católica: levou para a justiça comum denúncias que até então eram restritas ao âmbito do Vaticano — como os crimes de corrupção e pedofilia — ampliou a participação das mulheres no Vaticano, acolheu a comunidade LGBTQIA+, defendeu a ecologia e a juventude, fez criticas contundentes ao “mercado”, à desigualdade social, entre outras coisas. No entanto, não conseguiu fazer uma transformação na Igreja, criando muitas tensões internas e deixando para a posteridade o aprofundamento dessas questões.

Nessa entrevista, concedida à Gerência de Comunicação da UENF (ASCOM), Py afirma que, dependendo de quem venha a assumir o posto de Francisco, há um grande risco de retrocesso. “Os elementos que Francisco apresentou podem estar em risco pelo nível de negociações internas que o próximo papa poderá ter que fazer. E isso é um problema”, afirma.

Veja a entrevista:

ASCOM/UENF – Qual o principal legado do papa Francisco?

FÁBIO PY – Ele foi um papa atento às dinâmicas da sociedade. Deve ser destacado que, uma vez eleito, assumiu o nome “Francisco” — em referência a São Francisco, o amigo dos pobres e dos pássaros. Logo, se o nome papal denota o significado de seu prelado, ele já se mostrou desde o início comprometido com os “pobres” e com a dinâmica ecológica, na acolhida de ambas as pautas. O que fez de forma corajosa e engajada. Ao mesmo tempo, teve um Papado bem ligado àquilo que o Concílio Vaticano II indicou, aprofundando o diálogo com a sociedade, o que vinha já há alguns anos sendo um debate esquecido pela Igreja. Mas, como afirmou Frei Beto, Francisco tinha uma cabeça progressista num corpo envelhecido — metáfora que cabe também à própria Igreja. Isso significa que, embora ele fosse progressista, não conseguiu implementar todas as dinâmicas que ele estava preocupado em fazer. Como muitos vêm dizendo, ele construiu “gestos” em relação a olhar o outro, a sociedade, a ecologia, a juventude, a comunidade LGBTQIA+, mas não conseguiu fazer uma revolução na Igreja. Ele fez encaminhamentos, mas não conseguiu ir além, sobretudo, porque a estrutura da Igreja é muito pesada, travada.


ASCOM/UENF – Na sua opinião, a Igreja deve optar por um novo papa no mesmo estilo ou buscar alguém mais conservador?

FÁBIO PY – Eu acho que a Igreja deveria aprofundar os sinais e gestos do Francisco. Ele tentou ajudar nisso, indicando pelo menos 80% dos participantes do Conclave (bispos e arcebispos) que vai ocorrer agora. Contudo, mesmo aqueles que ele indicou, embora mais ligados a ele, não têm uma prática tão contundente relacionada ao que chamamos de “igreja dos pobres”, da teologia da libertação. Há muitos, como os dois africanos, que são conservadores em termos teológicos, mas têm uma certa prática pastoral, de acesso e de diálogo com a sociedade. Nesse sentido, mesmo no melhor panorama, nós não temos figuras tão decisivas que possam aprofundar esse diálogo com a sociedade como Francisco.

ASCOM / UENF – Fale um pouco sobre as tensões internas causadas pelo papa Francisco.

FÁBIO PY – Os “gestos” de Francisco causaram vários problemas na estrutura católica. Como qualquer instituição centenária, a “tradição” (e sua conservação) é o emblema principal da Igreja Católica. Assim, não quer dizer também que o papa Francisco fosse tão radical, revolucionário. Mas que, diante das linhas tradicionais e ultraconservadoras, qualquer “gesto” em outro sentido vira um espaço para conflitos e um repertório para narrativas odiosas. Como já dissemos, sua linha teológica (teologia do povo) normalmente não dialogava com o marxismo, mas com os elementos da cultura, com a noção do povo, como usou em vários momentos — “povo da fé”. Logo, na sua órbita habitual, não era um crítico severo do capitalismo. Mesmo assim, já se dizia que as tensões vinham sendo cada vez mais densas dentro da Igreja, então não creio que deva vir um papa com o mesmo perfil. Alguns bispos bem ativos do Brasil vêm indicando que o próximo papa deve ser alguém de perfil mais apaziguador e menos tensionador. O perfil de Francisco, dentro da estrutura, era  tensionador, de luta por justiça e, para fora, apaziguador, sorridente e acolhedor.

ASCOM/UENF – Existe a possibilidade de ser escolhido um brasileiro para o lugar de Francisco, uma vez que, no último conclave, foi escolhido um papa sulamericano?

FÁBIO PY – O Brasil é o terceiro país em número de bispos que podem votar e receber indicação, mas não está na lista dos países com mais direcionamento sobre isso. Interpreto assim, porque acabou de vir um papa latino-americano. Fala-se principalmente em um africano ou coreano — alguém ligado a Francisco — e sobretudo setores da Europa. Pessoalmente, acredito que possa ser escolhido alguém da Europa para tentar apaziguar os “gestos” demandados por Francisco no seu prelado. Não só os escândalos formais, que Francisco intermediou, mas as tensões criadas por conta dos posicionamentos dele. Concordo com os posicionamentos, mas, numa estrutura conservadora, que é sobretudo levada por setores ultraconservadores e tradicionais, qualquer movimento é interpretado como destoante. 

ASCOM / UENF – Sabemos que no Brasil a Igreja Católica perdeu muitos fiéis nos últimos anos.  Como está a influência da instituição no resto do mundo?

FÁBIO PY – Por incrível que pareça, a Igreja Católica vem retomando fiéis e crescendo no mundo todo, de acordo com os últimos dados. Em cada continente a Igreja cresce, embora no Brasil venha decrescendo. Ela vem aumentando sua força, principalmente na África, e isso é um mérito do Francisco, e de seu corpo de bispos, com a sua prática de ir nos diferentes locais, de participar de diversas ações, congressos, de construir essa dinâmica sinodal. Ele ajudou a renovar um pouco os quadros. Oitenta por cento é bastante coisa nesses 12 anos de mandato. Então a Igreja, embora tenha tensões com a modernidade, não está enfraquecida não. Acho essa leitura equivocada. O que está acontecendo é que as tensões estão cada dia mais afloradas também pelo corpo de grupo ultraconservadores que aumentam a gritaria. Mas as tensões não significam que falta engajamento. Muito pelo contrário, há coisas importantes ali que as pessoas estão disputando.

ASCOM/UENF – Como você avalia o futuro da  Igreja Católica neste momento?

FÁBIO PY – Creio na medida da força da Igreja Católica, na continuação ou no  aprofundamento dela. A Igreja vem aprofundando sua influência demográfica, suas relações com os poderes estatais, com as nações, então eu vejo que ela vem se reafirmando com muita força. E tomara que a tônica seja no caminho do Francisco, de olhar pelo outro, para a sociedade, de cuidado, de abertura para setores minoritários, olhar para a juventude. Tomara que tudo isso seja levado à frente. Tomara que seja o legado fértil do seu papado. Que seja uma condição essencial.

ASCOM / UENF –  Situações negativas como corrupção no Banco do Vaticano e casos de pedofilia, que mancharam a imagem da Igreja, já foram superados?

FÁBIO PY- Não, não acho que isso foi superado, muito pelo contrário, eu acho inclusive que o próximo Papado deveria desenvolver mais essas questões jurídicas do Vaticano. Mas a tendência é que a coisa ganhe um outro corpo, uma acomodação ou outra dentro da estrutura católica. Francisco lutou pela justiça dentro da instituição. Então eu acho importante que isso permaneça, mas olho com muita desconfiança que isso vá continuar a ocorrer. Essa era uma característica da luta de Francisco para poder, de alguma forma, dar mais transparência e democratizar mais a instituição — embora o Vaticano não seja uma instituição democrática. É uma monarquia, levada pelo Bispo de Roma. Logo, se tem um papa, se tem a figura de um bispo, de um monarca, é uma instituição sobretudo oligárquica e vertical.

ASCOM / UENF – Que ações do papa Francisco foram cruciais no enfrentamento a estas questões?

FÁBIO PY– O papa Francisco entregou para a justiça comum essas questões do abuso dos padres, corrupção no Banco do Vaticano etc. Na minha opinião, essas foram as grandes questões que ele conseguiu tocar internamente. Mas, dependendo do perfil que vem aí, corre-se o risco de que tudo isso volte a ser de novo uma dinâmica intra-instituição. Logo, não vai ser fiscalizado, não vai ser judicializado. Tudo bem, ele só fez gestos, mas, ao mesmo tempo, dentro da estrutura ele fez um estardalhaço porque essas questões nunca tinham sido tratadas dessa forma. 

ASCOM/UENF – Muitos criticam o papa por não ter ido mais a fundo em questões como a participação das mulheres na Igreja e o casamento dos padres. Qual a sua opinião sobre este assunto?

FÁBIO PY – O papa Francisco era um reformista e, como tal, ele negociava o tempo todo internamente com a instituição. Como estamos dizendo, ele se relacionava com a “teologia do povo”, que não é uma teologia da libertação, é uma adaptação do Concílio Vaticano que foi feito na Argentina. Agora, como alguém muito ligado à “pastoral”, era um sujeito acostumado com as negociações. A partir da lógica do diálogo, das aproximações e também dos enfrentamentos necessários, foi possível o incentivo para que as mulheres assumissem alguns cargos, o acolhimento à comunidade LGBTQIA+ e o fomento à discussão sobre a possibilidade de os padres casarem. São gestos interessantes, mas ele não conseguiu aprofundar. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer que, embora aberto ao diálogo, Francisco também era alguém da instituição. Muito carinhoso, carismático, sorridente, mas era alguém da instituição. Então ele tinha que fazer um monte de negociação interna no Vaticano. Algumas coisas ele teve condição de fazer e outras foram gestadas para o futuro. Por isso, fala-se que era um reformista, não um revolucionário que queria mudar completamente as bases da Igreja. Essa é uma diferenciação importante para ser dita em relação ao papa Francisco.

ASCOM/UENF – Você acha que haverá continuidade nas reformas que o papa Francisco conseguiu fazer ou pode haver um retrocesso?

FÁBIO PY – Pelo que vem se desenhando, caso realmente o próximo papa seja de um perfil mais conciliador dentro da Igreja — ou seja, não assuma tantas frentes, tantos embates como Francisco — existe sim o perigo de um retrocesso. Embora grande parte dos cardeais e arcebispos do Conclave que vai escolher o novo papa tenham sido indicados por Francisco, a  grande questão é qual vai ser o posicionamento direto do novo papa. Ou seja, os elementos que Francisco apresentou podem estar em risco pelo nível de negociações internas que o próximo papa terá que fazer. E isso é um problema. A figura do Francisco sempre foi muito interessante, sobretudo acolhedora.  Mesmo as pessoas que não são da tradição católica se sentiam pastoradas pela sua figura. Havia o entendimento da figura do papa como de alguém que estava lá na frente tentando humanizar a Igreja Católica. Tenho muitas dúvidas de que isso possa continuar com o novo papa.

(Jornalista: Fúlvia D’Alessandri – Fotos: Cassiane Falcão – ASCOM/UENF)

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