‘Ciência de ponta não opera milagres’

Em nenhum outro momento da história mundial, a humanidade depositou todas as suas esperanças na ciência. Afinal, a busca por uma vacina contra o coronavírus é considerada a principal condição para que o mundo volte à sua normalidade. Mas será que, finalmente, a ciência será valorizada como deveria, principalmente no Brasil? Membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), o professor Thiago Motta Venâncio, da UENF, não tem muitas expectativas. “A ciência está diretamente envolvida com grandes melhoras na qualidade de vida humana ao longo das décadas e nunca teve seu valor amplamente reconhecido pela sociedade”, afirma.

Ele reconhece o esforço dos cientistas brasileiros, mas considera muito pouco. “Países que têm melhor situação de fomento estão sequenciando centenas ou mesmo milhares de genomas do SARS-COV-2 nas últimas semanas, o que requer mais recursos, infraestrutura instalada e pessoal do que temos aqui”, diz.

Thiago afirma que o País precisa reconhecer a ciência como um bom investimento para o país. E lembra que uma vacina produzida nos países desenvolvidos demorará a chegar ao Brasil. “Há uma corrida mundial pela vacina, que virou uma questão de segurança nacional. Será a mesma situação dos ventiladores e EPIs — não adianta você querer comprar quando o mundo quer a mesma coisa”, diz. “Ciência de ponta não opera milagres e precisa de fomento constante e amplo para dar o retorno que o país precisa”’. Veja a entrevista concedida por Tiago à ASCOM/UENF. 

ASCOM / UENF –  No atual governo, a ciência Brasileira sofreu um duro golpe. Poucos recursos, corte de bolsas, além de uma campanha de depreciação das universidades públicas. No entanto, a chegada  do coronavírus colocou toda a esperança nas mãos dos cientistas. Você acha que finalmente as pessoas (e o governo) caíram em si no que diz respeito à importância da ciência para a sociedade?

Thiago – A piora no fomento à pesquisa no Brasil precede a posse do Presidente Bolsonaro e se agravou em sua gestão. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) está esvaziado e o orçamento atualmente destinado à pesquisa equivale a aproximadamente 1/3 do praticado há 10 anos, quando deveria, no mínimo, ter tido suas perdas inflacionárias corrigidas ao longo dos anos. Some-se a isso a disparada do dólar. É uma situação terrível para a  ciência nacional. Sobre a atual pandemia, a sociedade deposita suas esperanças nos cientistas. No entanto, ciência de ponta não opera milagres e precisa de fomento constante e amplo para dar o retorno que o país precisa. E os cientistas brasileiros merecem tal apoio, pois já deram respostas muito importantes ao país, como na agricultura e na epidemia de Zika. Pessoalmente, não tenho dúvidas de que estaríamos numa situação muito melhor na pandemia se tivéssemos um MCTIC robusto. Por fim, apenas o tempo dirá se as pessoas mudarão a sua mentalidade com relação à ciência após a pandemia. Vivemos um momento difícil no mundo, o da pós-verdade, onde as opiniões  e teorias conspiratórias tem o mesmo valor do conhecimento científico consolidado para uma fatia crescente da sociedade.

ASCOM / UENF – Você acredita que, uma vez superado esse momento (com a descoberta de uma vacina por exemplo), haverá uma maior compreensão da importância da pesquisa científica no País?

Thiago – Sinceramente, eu não espero por isso. A ciência está diretamente envolvida com grandes melhoras na qualidade de vida humana ao longo das décadas e em muitos países, não nunca teve seu valor amplamente reconhecido pela sociedade na maioria dos países. Em 1950, a expectativa de vida de uma pessoa nascida na América Latina era próxima de 50 anos. Hoje ela supera os 70. Este aumento tem enormes contribuições da ciência, especialmente na área de saúde. A agricultura constantemente bate recordes de produção e melhora a condição alimentar da população, a despeito dos graves problemas sociais de vários países, como por exemplo o Brasil. A Biotecnologia tem ocupado um papel central e crescente no mundo moderno e será responsável por uma parte relevante do PIB dos países que investirem adequadamente nela. 

ASCOM / UENF –  Mesmo sem recursos, os cientistas brasileiros vêm demonstrando grande competência neste momento com ações voltadas para o coronavírus. Foi o caso, por exemplo, do sequenciamento do vírus em tempo recorde, bem como da criação de um respirador de baixo custo por cientistas da USP. Também há pesquisas buscando uma vacina. Como você avalia essas ações?

Thiago – Os cientistas brasileiros, como de hábito, não fugiram da responsabilidade. Em muitos estados, quase sempre em universidades públicas, há pesquisadores contribuindo na testagem do SARS-COV-2. São Paulo consegue fazer isto de forma mais efetiva, justamente por ter uma política permanente e consolidada de fomento à pesquisa, que resultou em melhor e mais ampla infraestrutura e pessoal capacitado. O sequenciamento do vírus foi um passo importante e foi executado com grande agilidade e competência. Mas é pouco; países que têm melhor situação de fomento estão sequenciando centenas ou mesmo milhares de genomas do SARS-COV-2 nas últimas semanas, o que requer mais recursos, infraestrutura instalada e pessoal do que temos aqui. Há uma corrida mundial pela vacina, que virou uma questão de segurança nacional. Será a mesma situação dos ventiladores e EPIs — não adianta você querer comprar quando o mundo quer a mesma coisa. Em momentos como este, fica evidente a necessidade do fortalecimento da pesquisa e da indústria nacionais. Ou alguém acredita que os EUA, Europa e China nos venderão a quantidade de vacina que precisamos antes de cuidar de sua própria população?

ASCOM / UENF – A história recente nos mostra que na esfera governamental o apoio à ciência é condicionado à capacidade econômica do País. Ao contrário dos países desenvolvidos, aqui os gastos com a ciência ainda são considerados não prioritários. Como reverter isso?

Thiago – Lamentavelmente isto só correrá quando o Estado brasileiro perceber que a ciência é um investimento. Diversos estudos, inclusive da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), já mostraram que é um investimento que vale muito à pena em termos de retorno, tanto financeiro quanto na formação de recursos humanos capacitados para os desafios que o mundo apresenta.

ASCOM / UENF –  Como fazer com que a sociedade brasileira compreenda a importância da ciência para o desenvolvimento do País?

Thiago – Isto não ocorre da noite para o dia. E nós, cientistas, temos também responsabilidade. É preciso interagir mais com a sociedade, mostrar o que fazemos. Precisamos de mais visibilidade, mais jornalistas científicos, ocupação de espaços públicos etc. As crianças precisam de melhor educação para que possam perceber a importância da ciência na vida das pessoas e para que se sintam atraídas pela carreira científica. Muitas pessoas não conhecem sequer um cientista e tem ainda aquele estereótipo do “gênio maluco” que atravessa as madrugadas no laboratório. Enfim, o caminho é longo. Mas não temos outra opção que não seja percorrê-lo.

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