A volta do Brasil ao Mapa da Fome decorre de um desmonte gradual das políticas de abastecimento, essenciais para o funcionamento das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. É o que acredita o professor Mauro Macedo, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UENF. “Esse agravamento ganha contornos ainda mais dramáticos com a falta de gestão durante a pandemia da Covid-19. É o resultado de decisões governamentais voltadas para o desmantelamento de uma série de ações sociais voltadas para a mitigação da fome da população nos últimos anos. O Brasil não precisava chegar aonde chegou. Temos mecanismos públicos suficientes. O que falta é organicidade e gestão”, afirma.
O professor lembra que o primeiro ato do governo Bolsonaro já dava uma clara ideia do que estava por vir. “No dia 1º de janeiro de 2019, como primeiro ato de seu governo, ele extinguiu o Conselho Federal de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). Pressupunha-se um efeito cascata, no qual os conselhos regionais e municipais seguiriam essa mesma rota. Mas isso não aconteceu, graças à sociedade civil organizada”, diz.
“Em meio à ‘invisibilidade dos miseráveis’, iniciativas para mitigar o flagelo da fome ganham destaque na sociedade. Prevalecem ações voluntariosas de pessoas, empresas, ONGs, que promovem iniciativas de auxílio a essas pessoas. Mesmo porque, não há uma associação, um sindicato, uma cooperativa (ou algo que o valha) de famélicos, que possam lhes representar”, diz.
Mauro ressalta que o Brasil possui um conjunto de políticas para auxiliar e intervir no combate à insegurança alimentar e nutricional, como é o caso dos cadastros formais que permitem identificar pessoas em situação de vulnerabilidade. Para o professor, tais cadastros representam uma ferramenta essencial em situações extremas, como a pandemia, por exemplo . É possível mapear estas pessoas com base nos dados de órgãos públicos como os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), as Unidades Básicas de Saúde (UBS), o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), o Microempreendedor Individual (MEI), Bolsa Família, entre outros.
“Ou seja, seria possível fazer com que chegasse a essas pessoas o auxílio emergencial, ou mesmo produtos alimentícios, como no caso do PNAE, e em um curto período de tempo, logo no início da pandemia. Faltou gestão para tomar ações rápidas e concretas nesse sentido”, afirma.
Outra dificuldade para mitigar a fome dos mais vulneráveis durante a pandemia foi a falta de um estoque regulador, uma medida historicamente utilizada para garantir a segurança alimentar da população. O atual governo extinguiu os estoques públicos da CONAB (Companhia Nacional de Abastecimento), empresa pública vinculada ao Ministério da Agricultura que deveria atuar como elemento regulador do mercado dos produtos agropecuários.
“Trata-se de uma política em que o Estado atua para proteger agricultores e cidadãos dos riscos do mercado, e com isso auxilia no abastecimento ao estocar na entressafra, propiciando preços mais baratos”, explica Mauro, que considera este um item indispensável para a segurança alimentar e nutricional da população.
“A inflação de hoje é, em parte, consequência da falta de estoque regulador, que se adiciona a outros elementos, como o câmbio, os preços públicos e os combustíveis. O Brasil é um grande produtor de alimentos, mas que, em boa medida, são destinados ao mercado externo. Dessa forma, uma parte importante do abastecimento alimentar interno recai no agricultor familiar, que padece de problemas de crédito, dificuldade de escoamento, custos elevados de produção, dentre outros problemas que rondam o cotidiano desses pequenos e médios produtores”, diz.
Na opinião do professor, as causas para a insegurança alimentar e nutricional são as mais variadas possíveis e podem ser percebidas na transversalidade das políticas públicas, como saúde, educação, assistência social, agricultura, emprego e renda, dentre outras.
“Na raiz, faltam políticas públicas que conversem entre si, com resultados e ações cooperadas. Um problema como este não é fácil extirpar, mas é possível mitigar. Não tem como falar de segurança alimentar e nutricional sem falar no conjunto coordenado dessas políticas”, ressalta.
Algumas iniciativas, segundo Mauro, poderiam auxiliar a reduzir um pouco tais problemas, como a educação alimentar, redução de desperdício, criação de bancos de alimentos, restaurantes e cozinhas populares e melhor logística na distribuição dos alimentos fornecidos pelos pequenos produtores.
“Sabe-se que o desperdício de alimentos em média atinge algo próximo de 32% da produção, e em Campos isso não é diferente. Quando se fala em fome tem-se um somatório de questões que, em boa medida, podem ajudar a amenizar o problema”, diz.
A temática da segurança alimentar nutricional no Brasil não é recente. Ganhou espaço na década de 1940 pelas mãos do médico e pesquisador pernambucano Josué de Castro, que expôs o problema da fome no livro “Geografia da Fome: (o dilema brasileiro: pão ou aço)”. Pela primeira vez, a fome era colocada como algo mais complexo do que a simples falta de oferta de alimentos. Em suas pesquisas, ele defendeu a ideia de que a fome estava ligada muito mais à má distribuição das riquezas, concentradas nas mãos de poucas pessoas.
Mas o conceito de segurança alimentar e nutricional só apareceria trinta anos mais tarde, na década de 1970, quando a FAO a definiu como “o acesso físico, social e econômico permanente a alimentos seguros, nutritivos e em quantidade suficiente para satisfazer as necessidades nutricionais, contribuindo para uma vida ativa e saudável”. A Organização das Nações Unidas (ONU), nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), coloca o combate à fome como um desafio global e defende o fim de todas as formas de fome e desnutrição até 2030.
Foi no início da década de 1990 que o Brasil praticamente acordou para o problema da fome, quando o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida. Utilizando o slogan “Quem tem fome tem pressa”, ele conseguiu mobilizar uma parcela importante da sociedade, criando um movimento nacional para arrecadar alimentos, numa época em que, segundo o IPEA, 32 milhões de brasileiros estavam abaixo da linha de pobreza. A iniciativa impulsionou diversas políticas públicas nos governos que se sucederam.
Hoje, segundo pesquisa da Rede PENSSAN, 55,2% da população brasileira convive com a insegurança alimentar. O Boletim nº 14 do Observatório das Desigualdades (“Máquina do Tempo: o Brasil de volta ao Mapa da Fome“), de fevereiro de 2022, afirma que o País vive um quadro de insegurança alimentar próximo ao do ano de 2004. “Entretanto, esta situação não se deve somente à crise sanitária, que explicitou ainda mais as desigualdades sociais, mas também é resultado do descrédito com as políticas sociais de segurança alimentar e nutricional que ocorrem no Brasil desde 2015”, diz o artigo, que tem o professor Mauro como um dos seus autores.
Veja o Boletim completo AQUI.